sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Despertar

Olhava fixamente para as mãos. Suas mãos.
O rosto não guardava qualquer expressão, nem um esboço de tudo que carregava no peito, nem dos pensamentos que, como em desenfreada corrida, ocupavam sua mente.
Aquelas mãos, suas mãos, sempre ocupadas em um afago, um consolo, um cuidado, hoje desnecessárias, esquecidas, como que vazias.
O faz de conta em que se refugiara não lhe dava mais acolhida e o aperto em sua alma não mais permitia que fingisse não perceber a indiferença, o esquecimento, a crueldade do abandono.
Agora a necessidade premente de entender, descobrir, precisar no tempo o momento em que aquelas mãos, suas mãos, deixaram de ser procuradas.
Não, foi mais que isso. Foi o desprezo, a sordidez da falsa e conveniente ignorância, a covardia em não reconhecer todo o bem recebido daquelas mãos.
Consumia-se em pensamentos, com os olhos secos, pois nem as lágrimas, abençoado alívio, mesmo que passageiro, vinham em seu auxílio.
Ainda observando aquelas mãos, suas mãos, teve a certeza de que tudo ainda estava lá para ser ofertado, embora não mais a quem antes de tudo usufruía, a quem nada mais de suas mãos receberia.
E, dando-se conta de que nada perdera, que tudo ainda estava lá, em suas mãos, finalmente chorou
Chorou de tristeza por aqueles que tardiamente lembrariam e de alegria por si e por todos que ainda estavam por vir.
Não, jamais viveria a tristeza de ter as mãos vazias.

sábado, 23 de outubro de 2010

Ciranda

“Como se fora
A brincadeira de roda
Memórias!
Jogo do trabalho
Na dança das mãos
Macias!”
(Gonzaguinha)

Nada como o cheiro, o aroma e a música para reavivar lembranças e até mesmo impedir o esquecimento algumas vezes tão desejado.
Hoje, não por acaso, um trecho da música “Redescobrir” de Gonzaguinha.
Na tentativa de espantar a melancolia que se fortalece nesses dias nublados, cantar sem compromisso com a afinação, redescobrindo memórias já tantas vezes visitadas, as mãos dançando na escrita.
No peito o desejo de poder ser mais nessa ciranda da vida, mas, mesmo não sendo, e com a prosa, mesmo que talvez fraca, a persistência vence.
E quando, frustrada pensa ter-se calado a ciranda, ela surge aproveitando-se de uma distração do silêncio. O burburinho e o fervilhar de idéias se faz ouvir. Discreto, sussurrado aqui, ali e ao redor.
Não, não se cala a ciranda, a prosa; elas são movimento e se fazem ouvir, ainda que baixinho, sorrateiras e sem fronteiras.
E, assim volta a esperança de “Renascer da própria força, própria luz e fé.”

Blog Where: Histórias...

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Histórias...


Filha mais nova dentre quatro mulheres, sete anos me separam da terceira, onze da segunda e catorze da primeira. Todas dirão, com certeza, que não havia necessidade de tantos detalhes, com uma delas complementando que sou prolixa, mesmo.
Muito nova já constatei que minhas irmãs eram dotadas de uma beleza singular; destacavam-se em qualquer ambiente, atraindo sempre os olhares masculinos e femininos.
Uma possuía pernas imbatíveis além de curvas com perfeitas saliências, outra era comparada à Úrsula Andress, e um corpo de violão, para completar, fora dado à terceira.
Junto delas, era uma criança falante, atenta a tudo que faziam, vestiam e, principalmente, aos segredos que trocavam. Alguns eu acabava descobrindo, outros elas inventavam e me contavam, para terem um pouco de sossego.
Às vezes, observava meu corpo de criança no espelho, os ossos salientes, pernas finas e vinha a certeza desanimadora que, se um dia atraísse os mesmos olhares, seria em função da diferença, do contraste.
Essa crença era tão forte que me fazia sentir raiva do infeliz que dissesse que eu era bonita, ou fizesse qualquer alusão à beleza das “quatro” filhas de meus pais.
Mas isso durava pouco e logo estava eu acelerando o tempo, e me via usando as roupas que mais gostasse, de cada uma delas. Fazia uma montagem de mim mesma adulta; rosto de uma, corpo de outra e cabelos e pernas de outra ainda.
Em meio a tudo isso, um irmão, quatro anos mais velho, para quem elas me empurravam vez ou outra. Provocador, fazia tudo para me irritar, mas tinha doçura suficiente para, com o mesmo empenho, me alegrar.
Em casa vivia num mundo de vestidos, maquiagens e sapatos misturado com técnicas e dribles de futebol, construção de carrinhos de rolimã, mangas e jabuticabas devoradas nos galhos mais altos das árvores.
Meu pai estava sempre bem humorado, sorrindo e entrava em toda brincadeira que eu iniciasse. Já minha mãe não tinha o mesmo humor e os sorrisos eram mais raros e disfarçados, pois temia que ficássemos mal acostumados.
De duas coisas eu gostava especialmente: observar e imitar minhas irmãs e material escolar novo, sempre comprado pelo meu pai, menos resistente que minha mãe à minha insistência.
Olhar minhas irmãs era como deleitar-me antecipando meu futuro. Envolver-me no cheiro de cadernos e livros novos, lápis e canetas incomuns era deliciar-me com meu presente.
Inventava histórias que escrevia e escondia no porão da casa, até que um dia meu irmão descobriu. Prometeu, jurou guardar segredo e, talvez, percebendo meu desespero, acredito que tenha cumprido a promessa
A descoberta do meu esconderijo, somada ao medo que eu sentia quando ia sozinha ao porão, transformou a preservação do meu segredo numa missão extenuante.
Passei a guardar os papéis junto com meu material escolar para que ninguém em casa os visse. Chegando ao colégio escondia-os sob o uniforme para que as freiras não encontrassem.
Um dia, ao voltar da escola escondi minhas histórias dentro da fronha do meu travesseiro e só me lembrei delas na manhã seguinte quando peguei o material para fazer a tarefa de casa.
Voltei apressada para o quarto, mas do corredor vi minha mãe com os papéis nas mãos, lendo e, ainda hoje não sei se rindo ou apenas sorrindo.
Também não sei se ela me viu ou não, mas nenhuma das duas tocou no assunto e quando eu fui dormir a roupa de cama havia sido trocada, mas minhas histórias estavam lá.

Agora, adulta, gosto do que vejo quando me olho no espelho e, também, de comprar cadernos, livros e do cheiro inconfundível de papel novo.
O cheiro, os aromas são para mim a mágica máquina do tempo que me leva para aqueles aconchegos, portos seguros que só a meninice é capaz de conhecer plenamente.
Histórias continuo a escrever, e da mesma forma: em segredo, assim como acabei de fazer.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Neurótica, eu?

Nos primeiros meses de vida dos meus filhos, eu ficava o máximo de tempo possível olhando para aquele serzinho minúsculo, atenta a cada detalhe, a cada mínima expressão.
Não escondia de ninguém a certeza de que a sobrevivência dele dependia única e exclusivamente de mim, afinal, somente eu, a mãe, conseguiria atender as necessidades do bebê, trocar a fralda, dar banho e embalar do jeitinho que ele gostava. E disso eu tinha plena convicção.
Isso é cuidado, zelo, certo?
Visitas de pessoas que sempre tinham palpite e receitas de chazinhos e remedinhos para filho alheio não faltava. Assim, todos que tentavam de alguma forma interferir ou minimizar esse relacionamento tão especial eram devidamente ignorados.
Algumas pessoas me consideravam um tanto neurótica. Algumas amigas, declaradamente e outras não tinham coragem de falar ou disfarçavam bem.
Claro que à noite, principalmente naquelas noites em que o bebê ficava muito quieto por um período longo, digamos, duas horas, ia ver se estava bem, mexia nele, examinava as roupinhas, os lençóis, à procura de algo que pudesse incomodá-lo.
Bom, também checava a respiração, tocava de leve para vê-lo movimentar-se, essas coisas que todas as mães fazem apenas por precaução, é claro.
Às vezes, acordada tinha sonhos inconfessáveis, como o de ser casada com um pediatra. Ficava imaginando a vida maravilhosa que essas mulheres de sorte tinham! A felicidade suprema de ter à mão e ao alcance do meu telefone esse ser fantástico que responderia cada pergunta que eu fizesse sem aquele olhar em parte condescendente e já minimamente paciente.
Mas não, tinha que ser casada com um advogado que tentava, sem muito sucesso, me convencer que assistir um filme na TV, claro, não colocaria em risco a integridade física e emocional do meu bebê. Com a babá eletrônica do meu lado, obviamente!
Conforme iam crescendo, as minhas atenções e meus cuidados se adequavam ao ritmo da minha vida, mas também aos progressos e, claro, às novas necessidades deles.
Hoje, com as mais amigas, relembro algumas situações e damos boas risadas.
O que não confesso, nem a elas, é a saudade que sinto daquela fase e que me invade quando, com a mochila nas costas ganham a rua.
Um beijo de despedida e, em resposta às minhas recomendações ganho um sorriso divertido acompanhado de um “relaxa, mãe”.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Por ora...

Por ora eu me contento.
Para espanto de muitos e alegria de poucos, nasci teimosa. E a vida, que nada deixa escapar, me acompanha nessa teimosia e às vezes até lhe ouço a risada empurrando-me, fazendo-me prosseguir.
Essa expressão tão usada de matar um leão por dia não me agrada por tudo que ela carrega em si; o ato de tirar a vida e o leão que, convenhamos, sequer sonha com minhas agruras.
Então, quando chega o momento, não necessariamente ao final do dia, em que me dou conta que venci o monstro que me assombra a cada despertar, eu festejo sozinha e depois divido com poucas e caríssimas pessoas.
Comemoro cada mínima vitória sorrindo para a imagem no espelho, fazendo uma prece, agradecendo a Deus, ao universo e, nesse momento, eu me contento.
Por ora eu me contento, pois assim como é certo que outros monstros surgirão, o mesmo acontece com minhas aspirações que me fazem ver a vida que em tantos momentos pensei ter me abandonado.
É então que tudo se soma e se mistura: a alegria genuína dessas poucas pessoas que me são tão caras com a risada contagiante da vida me chamando para o mundo e me fazendo querer e acreditar que há muito mais logo ali adiante.
E acreditando, por ora me contento. Por ora...

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Assim Como na Vida...

Na elegante loja vendiam móveis de extremo bom gosto e preciosidades antigas.
No galpão que ficava na parte detrás da loja eram restauradas valiosas peças e fabricavam outras requintadas e caras.
Ela olhava a enorme e imponente estante numa mal disfarçada admiração invejosa e vã tentativa de aparentar desprezo.
- Ora - pensava – um brutamontes, isso sim!
Desviando o olhar encarou altiva o movelzinho de cabeceira esquecido em um canto, mais parecendo um criado que, mudo, poderia nem ser notado.
- Quanta insignificância – resmungava para si mesmo a soberba.
Passeando os olhos pela oficina deparou-se com a pequena mesa que há muito tempo deixara de ser o centro das atenções e logo ao lado viu o aparador, cujo brilho irreparável berrava aos olhos que o fitassem.
- Cafonalha ! – gritou ela em pensamento – aquilo era uma aberração, letal a olhos desprotegidos!
Em contraste ao ofuscante monumento ao mau gosto, lá estava a poltrona que, mesmo esfarrapada mantinha aquela irritante dignidade.
A cômoda até que tinha lá seu charme, a despeito de assemelhar-se a uma matrona beirando a obesidade.
Seus pensamentos foram interrompidos pelos ruídos dos operários que voltavam, aos poucos, da tranqüilidade e torpor que beirava o cochilo sedutor do horário de almoço já devorado.
O trabalho quase acabado, aquele mal começado e o material para os ainda não iniciados estavam separados numa desordem cuja organização só os trabalhadores compreendiam.
Ela, uma cristaleira de extremo bom gosto e delicadeza, expressos em seus finos vidros e madeira nobre de contornos sinuosos e raros, olhava com horror aquelas mãos grossas e de cor marcada por anos de trabalho pesado.
- Como poderiam essas mãos rudes pretender a habilidade de tocá-la e realizar os pequenos reparos em seus delicados encaixes? – pensava ela sentindo um calafrio de horror.
Apavorada, acompanhou os movimentos de um deles em sua direção já antecipando o desastre ultrajante de ver-se toda mal consertada e sua elegância perdida.
Observou o homem pegar o martelo e, com extremo alívio, viu-o virar-se e segurar firme com uma das mãos um velho estrado de suporte de colchões.
- Ora, que conserto haveria para aquelas medíocres ripas já enfileiradas e devidamente fixadas por simples e banais pregos? Se bem que alguns, de tão velhos e feios, já deveriam estar no lixo!– ponderou em silêncio.
Notou que o homem apontava um martelo para um deles que, saliente, desobedecia à rigorosa simetria dos demais.
- Quanto atrevimento – pensou irritada a esguia guarnecedora de finos cristais – prego teimoso! Não sabia o quanto incomodava assim, com a cabeça em total desalinho às demais? Um prego tinha que se portar de maneira que nem a mais delicada das mãos notasse sua presença na madeira!
Acompanhava, com satisfação incontida, o movimento da mão do homem martelando cada vez com mais força aquela ousada teimosia que, para seu assombro, ainda resistia.
Ela não teve tempo de ver o pedaço de madeira do estrado que, partindo-se com a força das marteladas no prego renitente, foi atirado como se de uma catapulta e acertando-a em cheio, transformou-a num amontoado de vidro e madeira.
Deixando de lado o martelo, o homem começou a recolher os pedaços de madeira jogando-os num canto qualquer.
Em seguida, com vassoura e pá de lixo retirou do chão os pedaços de vidros daquela imitação grosseira e barata que viera para a oficina em meio às relíquias a serem restauradas.
E o prego, ainda sobressaindo-se aos demais, foi esquecido. Não por muito tempo, ele o sabia.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sobre gatos e...Gatos!

Estava olhando as vitrines das lojas numa ruazinha agradável. Olhava roupas e acessórios que os olhos amavam, mas a carteira impunha algumas restrições.
De repente ouve a voz familiar de uma conhecida de longa data. Na verdade havia um grau de parentesco que mais parecia uma estrada cheia de bifurcações e para explicá-lo era necessário uma espécie de croqui.
Assim, o parentesco só é mencionado aqui para que se tenha a idéia exata da repercussão que o diálogo provocou.
E pensar que teve início de forma totalmente inofensiva e prometia uma série de banalidades!
- Oiêeee, menina por onde você anda? Não vejo você há séculos !!!
- Pois é, correria, trabalho, casa, filhos...
- Ahhh não, você está brincando !!! Não sai mais? Como pode ???
- É, tenho andado tão cansada ultimamente que só quero ficar em casa nos finais de semana.
- Mas me conta, vai, e aquele monte de gatos?
- Monte de gatos? Não você deve estar confundindo com a minha irmã que tem seis. Eu agora só tenho uma gata.
- Como? Uma gataaaa? – perguntou a outra, olhos arregalados. – Imagina! Eu lembro que depois de sua separação tinha sempre um monte de gatos em volta!!!
- Não, você está fazendo confusão, era um monte de cachorros! – respondeu, estranhando a teimosia da outra.
- Cachorros...todos?! – a outra, incrédula, parecia fazer um esforço enorme para articular as palavras enquanto a olhava com uma estranha expressão.
- Sim – respondeu ela já um tanto irritada com a chatice da conversa – cheguei a ter cinco em casa.
Aproveitando a pausa boquiaberta da outra e querendo acabar com a insistência desagradável, tratou logo de esclarecer:
- Quando era solteira tinha a minha gata que sumiu logo que me casei e não consegui mais encontrá-la. Quando o casamento acabou só fiquei com cachorros, um mais lindo que o outro, mas davam uma canseira!
- Não acredito!!! – retrucava a outra, olhos ainda mais abertos e a pele morena alternando do pálido ao rosado.
- Verdade, cansei ! Deixei a casa, fui para um apartamento só com a minha gata. É um paraíso; não faz bagunça, é carinhosa e fica quietinha do meu lado.
A outra continuava com aquela expressão estranha e já não falava mais nada.
Agarrando-se à oportunidade de livrar-se daquela conversa chata ela despediu-se e caminhando pensava se a outra estaria com algum problema; afinal, o que deu nessa mulher? Não parava de fazer perguntas e ainda queria saber mais dos bichos do que ela própria? Francamente, ô conversinha chata!
Enquanto isso, a outra, com a boca ainda aberta, pensava; o mundo está perdido mesmo! Por essa ninguém esperava: essa, com cara de sonsa, agora só quer saber de mulher e a irmã com pose de certinha com seis homens! Imagina que ela guardaria essa bomba até o final de semana no clube!
Entrou no carro já saboreando o impacto que a novidade teria quando ela começasse a usar o telefone.

domingo, 8 de agosto de 2010

A Senhora, a Mulher e a Criança

A mulher preparava o café e ao lado dela, na cozinha, a menina olhava a velha senhora sentada na poltrona da sala olhando a televisão. Olhava sem ver, a menina o sabia, enquanto observava o rosto marcado, de expressão carregada.
Não eram as rugas, profundas e semelhantes a sulcos irregulares feitos na terra por um arado conduzido sem habilidade que tornavam a expressão amarga de descrença e desesperança. Não, ela sempre estivera lá.
A criança lembrava-se bem do mesmo rosto quarenta anos antes, sem os sulcos, mas estampando a tão familiar quanto desagradável expressão.
Lembrava-se e sentia ainda aquela tristeza, aquele aperto no coração que a convivência com a velha senhora fazia ser tão profundos. E junto vinha a angústia, a culpa, pois a velha senhora, sua mãe, sempre tratara bem a menina, afinal atendia a todas as suas necessidades enquanto ensinava-a que dinheiro não caía do céu, que a vida era dura e que algumas pessoas nasciam com sorte, outras não. Ponto.
A menina desviava os olhos para a mulher que estava agora terminando o café e preparando a mesa para o lanche da velha senhora na esperança de que ela olhasse de volta, esboçasse um gesto, um carinho e, quem sabe, com sorte, desmentisse toda a tristeza que apertava-lhe o peito.
Observava os gestos mecânicos da mulher na execução de uma tarefa diária que de tantas vezes repetidas não demandavam qualquer raciocínio.
O rosto da mulher trazia a expressão de todos os sentimentos que oprimiam a menina há tanto tempo, só não a esperança de ser vista, cuidada, acarinhada que ainda se veria caso se olhasse nos olhos da criança.
A menina queria chamar a atenção da mulher para si; quem sabe quebrando a louça, puxando a toalha que cobria a mesa, derrubando o café. Qualquer coisa que tirasse a mulher daquela letargia, que a fizesse desmentir tudo aquilo que a velha senhora repetia incansavelmente.
A menina observava a senhora caminhando com dificuldade até a mesa, servindo-se de café e bolo e, antes mesmo de provar, reprovando o sabor e lamentando que nenhuma das filhas havia aprendido a cozinhar como ela.
Seria uma cena conhecida, que se repetia todos os dias, se naquele momento a mulher, ignorando a velha senhora, não tivesse olhado diretamente nos olhos da menina.
As lágrimas desciam pelo rosto das duas em perfeita sincronia e, sem qualquer movimento, a mulher abraçou a criança e embalando-a sussurrava em seu ouvido que as verdades da velha senhora não seriam delas e, enquanto fundiam-se, mulher e criança, esta sentia desaparecer de seu peito toda a angústia e medo do futuro.
Ainda imóvel e confortando a criança a mulher olhava a velha senhora, sua mãe, com um misto de amor, ternura e pena.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Quem Gostaria?

Recebi um e-mail que, com certeza, já circulou muito. Tratava de algumas regras básicas de educação. Não uso “etiqueta” porque é uma palavra que definitivamente não me atrai, remete a algo rígido e chato.
Voltando às regras contidas na mensagem, uma delas recomendava jamais fazer aquela perguntinha tão conhecida e desagradável – quem gostaria (?) – ao atender telefonemas e antes de dizer se a pessoa está ou não disponível para atender à ligação.
Concordo; perguntinha grosseira e irritante, mas depois de passar por algumas situações mudei de atitude sem rever qualquer conceito sobre boas maneiras.
Situações que levam qualquer pessoa a considerar a possibilidade de jogar o telefone pela janela ou pisoteá-lo até reduzir o pobre aparelho a um amontoado de cacos e acabar no prejuízo, além de enfrentar a expressão temerosa estampada no rosto da secretária ou de quem atendeu a ligação e perceber que ela está cogitando pedir reforços ou mesmo uma camisa de força.
Não, não é exagero e explico.
Há dias em que o trabalho parece impossível de ser concluído, que o objeto de sua pesquisa parece ter sido tirado de circulação por algum duende ou por uma conspiração para o seu insucesso. Bom, afinal todo mundo tem direito a certo grau de neurose em determinadas circunstâncias.
Trabalhando, pesquisando, concentração total e finalmente o texto fluindo, aquele relatório chato está sendo finalizado e vem a interrupção para atender uma ligação de uma pessoa cujo nome é, definitivamente, desconhecido.
Seguindo as regras da boa educação já interrompi o que estava fazendo e atendi ligações em que a pessoa disparava um amontoado de informações, sem dar uma chancezinha de interrupção.
Terminada a ladainha o ataque já parte para pedidos de contribuições para todos os tipos de necessitados e entidades. Muitas, senão a maioria dessas entidades atende à necessidade de mansões, viagens e outras coisinhas do gênero.
Não, não sou a mais desalmada e insensível das criaturas e ajudo sim, o próximo como posso. E quando digo próximo estou falando também daqueles que precisam e estão perto de mim.
Voltando às ligações, em algumas oportunidades, caso tivesse seguido as instruções, já seria proprietária de quatro carros maravilhosos por ter sido sorteada por uma emissora de televisão e isso sem nunca ter participado de qualquer concurso!
Como sou teimosa e não segui as orientações de ligar para um determinado número, fiquei sem os carros e, muito provavelmente escapei de desencadear algo em algum sistema prisional de segurança máxima.
Mas a minha “sorte” vai ainda mais longe; já fui também premiada com cursos “totalmente gratuitos” de informática, de Inglês, Espanhol e outros tantos impossíveis de enumerar aqui. Com certeza seria hoje uma exímia e poliglota conhecedora de informática, caso tivesse concordado em pagar “apenas” o material, as apostilas.
Nesse ponto, aquela engenhoca chamada telefone já é olhada como “o inimigo” e as pessoas que tentam transformar você numa abominável criatura insensível ou que joga a sorte pela janela não fazem a menor idéia da imensa sorte que têm por não estarem bem ali na sua frente.
São, realmente, pessoas de sorte. De sorte e incansáveis.
Já em casa, ao final do dia que, afinal foi normal considerando a normalidade de uma maratona, acomodada naquela poltrona ou naquele sofá, nas mãos o material que há tempos esperava e que estava louca para ler ou pronta para assistir ao filme que havia reservado.
O tão esperado e abençoado silêncio do telefone, que em outros dias parece que cala para torturar é quebrado como o som de uma gralha no cérebro.
Impossível evitar aquele sorrisinho cínico e maquiavélico enquanto observo a pessoa que atendeu perguntar:
- Quem gostaria?