quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sobre gatos e...Gatos!

Estava olhando as vitrines das lojas numa ruazinha agradável. Olhava roupas e acessórios que os olhos amavam, mas a carteira impunha algumas restrições.
De repente ouve a voz familiar de uma conhecida de longa data. Na verdade havia um grau de parentesco que mais parecia uma estrada cheia de bifurcações e para explicá-lo era necessário uma espécie de croqui.
Assim, o parentesco só é mencionado aqui para que se tenha a idéia exata da repercussão que o diálogo provocou.
E pensar que teve início de forma totalmente inofensiva e prometia uma série de banalidades!
- Oiêeee, menina por onde você anda? Não vejo você há séculos !!!
- Pois é, correria, trabalho, casa, filhos...
- Ahhh não, você está brincando !!! Não sai mais? Como pode ???
- É, tenho andado tão cansada ultimamente que só quero ficar em casa nos finais de semana.
- Mas me conta, vai, e aquele monte de gatos?
- Monte de gatos? Não você deve estar confundindo com a minha irmã que tem seis. Eu agora só tenho uma gata.
- Como? Uma gataaaa? – perguntou a outra, olhos arregalados. – Imagina! Eu lembro que depois de sua separação tinha sempre um monte de gatos em volta!!!
- Não, você está fazendo confusão, era um monte de cachorros! – respondeu, estranhando a teimosia da outra.
- Cachorros...todos?! – a outra, incrédula, parecia fazer um esforço enorme para articular as palavras enquanto a olhava com uma estranha expressão.
- Sim – respondeu ela já um tanto irritada com a chatice da conversa – cheguei a ter cinco em casa.
Aproveitando a pausa boquiaberta da outra e querendo acabar com a insistência desagradável, tratou logo de esclarecer:
- Quando era solteira tinha a minha gata que sumiu logo que me casei e não consegui mais encontrá-la. Quando o casamento acabou só fiquei com cachorros, um mais lindo que o outro, mas davam uma canseira!
- Não acredito!!! – retrucava a outra, olhos ainda mais abertos e a pele morena alternando do pálido ao rosado.
- Verdade, cansei ! Deixei a casa, fui para um apartamento só com a minha gata. É um paraíso; não faz bagunça, é carinhosa e fica quietinha do meu lado.
A outra continuava com aquela expressão estranha e já não falava mais nada.
Agarrando-se à oportunidade de livrar-se daquela conversa chata ela despediu-se e caminhando pensava se a outra estaria com algum problema; afinal, o que deu nessa mulher? Não parava de fazer perguntas e ainda queria saber mais dos bichos do que ela própria? Francamente, ô conversinha chata!
Enquanto isso, a outra, com a boca ainda aberta, pensava; o mundo está perdido mesmo! Por essa ninguém esperava: essa, com cara de sonsa, agora só quer saber de mulher e a irmã com pose de certinha com seis homens! Imagina que ela guardaria essa bomba até o final de semana no clube!
Entrou no carro já saboreando o impacto que a novidade teria quando ela começasse a usar o telefone.

domingo, 8 de agosto de 2010

A Senhora, a Mulher e a Criança

A mulher preparava o café e ao lado dela, na cozinha, a menina olhava a velha senhora sentada na poltrona da sala olhando a televisão. Olhava sem ver, a menina o sabia, enquanto observava o rosto marcado, de expressão carregada.
Não eram as rugas, profundas e semelhantes a sulcos irregulares feitos na terra por um arado conduzido sem habilidade que tornavam a expressão amarga de descrença e desesperança. Não, ela sempre estivera lá.
A criança lembrava-se bem do mesmo rosto quarenta anos antes, sem os sulcos, mas estampando a tão familiar quanto desagradável expressão.
Lembrava-se e sentia ainda aquela tristeza, aquele aperto no coração que a convivência com a velha senhora fazia ser tão profundos. E junto vinha a angústia, a culpa, pois a velha senhora, sua mãe, sempre tratara bem a menina, afinal atendia a todas as suas necessidades enquanto ensinava-a que dinheiro não caía do céu, que a vida era dura e que algumas pessoas nasciam com sorte, outras não. Ponto.
A menina desviava os olhos para a mulher que estava agora terminando o café e preparando a mesa para o lanche da velha senhora na esperança de que ela olhasse de volta, esboçasse um gesto, um carinho e, quem sabe, com sorte, desmentisse toda a tristeza que apertava-lhe o peito.
Observava os gestos mecânicos da mulher na execução de uma tarefa diária que de tantas vezes repetidas não demandavam qualquer raciocínio.
O rosto da mulher trazia a expressão de todos os sentimentos que oprimiam a menina há tanto tempo, só não a esperança de ser vista, cuidada, acarinhada que ainda se veria caso se olhasse nos olhos da criança.
A menina queria chamar a atenção da mulher para si; quem sabe quebrando a louça, puxando a toalha que cobria a mesa, derrubando o café. Qualquer coisa que tirasse a mulher daquela letargia, que a fizesse desmentir tudo aquilo que a velha senhora repetia incansavelmente.
A menina observava a senhora caminhando com dificuldade até a mesa, servindo-se de café e bolo e, antes mesmo de provar, reprovando o sabor e lamentando que nenhuma das filhas havia aprendido a cozinhar como ela.
Seria uma cena conhecida, que se repetia todos os dias, se naquele momento a mulher, ignorando a velha senhora, não tivesse olhado diretamente nos olhos da menina.
As lágrimas desciam pelo rosto das duas em perfeita sincronia e, sem qualquer movimento, a mulher abraçou a criança e embalando-a sussurrava em seu ouvido que as verdades da velha senhora não seriam delas e, enquanto fundiam-se, mulher e criança, esta sentia desaparecer de seu peito toda a angústia e medo do futuro.
Ainda imóvel e confortando a criança a mulher olhava a velha senhora, sua mãe, com um misto de amor, ternura e pena.