domingo, 21 de fevereiro de 2010

Vida, Ritmo e Compasso.

Acorda e, mal abre os olhos, é atingida sem chance de fuga, de refúgio. Ela sabe, ele sempre estivera ali, à espreita, aguardando o momento em que ela teria que encará-lo.
Quem disse que os sentimentos não sabem ser traiçoeiros? Ou quem disse exatamente o contrário, que justamente por ser sentimento conseguia sê-lo – traiçoeiro - com especial habilidade?
O sentimento reconhecido, aquela inquietação tão familiar quanto antiga.
Agora tomava conta da sua alma, do seu corpo afastando-a de tudo à sua volta.
Essa inquietação, teimosa, insistente agora não aceitava mais a ignorância. Tantos anos fingindo não notar a presença que, se notada exigiria um gesto, uma palavra, uma atitude.
Tantos anos dando voltas no relógio, pisando as horas, atenta tão somente ao ruído dos seus passos, policiando seus pensamentos e, conseguindo assim fugir da inquietação, da ânsia pelo novo, por uma vida que ela sabia existir, mas não ousava pretendê-la.
Mas a alma alcança lugares que nem a mais brilhante das mentes sonha existir. E ela queria mudar a paisagem da sua janela.
Não gostava de mentir; temia a dificuldade em reconhecer o limite e, ainda pior, se o ultrapassava.
E agora era inevitável; não podia mais ignorar que a tristeza negava-lhe o bom humor; o fracasso negava-lhe a esperança e a covardia trazia-lhe o desamor.
Até nisso era contida, pois, afinal o que é o desamor senão tão somente a ausência do amor? Desamor não é ódio; indiferença, talvez. Não, era apenas a ausência de outro sentimento.
Tudo isso ela pensou ainda sentada na cama. Olhou para o relógio com a certeza que estivera ali, fitando o vazio por horas.
Constatou que foram minutos.
Muito tempo quando o ambiente perde o equilíbrio, quando pensamentos, sentimentos e matéria não acompanham o mesmo ritmo e ficam irremediavelmente em descompasso.
Levantou-se sem fazer ruído, arrumou-se e ganhou a rua consciente de que agora dependia dela colocar tudo de volta ao mesmo ritmo e, finalmente, definir ela própria o compasso de sua vida.


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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Afinal, Você Merece!

Você pode passar a vida dando satisfações, explicando o óbvio, repetindo e repetindo seus motivos.
Com sorte e se estiver atenta percebe que isso acontece sempre com as mesmas pessoas. Aí você desanima, cansa, e se sente literalmente exaurida.
Mas, ainda com mais sorte e mais atenta, um dia você finalmente percebe que quanto mais satisfações você der, mais será cobrada; quanto mais explicar o óbvio menos será entendida e seus motivos, convenhamos, são seus.
É então que você se dá conta de que faz tudo isso a quem não importa realmente. Ou melhor, a quem na verdade não “se” importa e cobra por cobrar; contesta por hábito e, na verdade, não está nem aí com o resultado final.
Se a ficha caiu, ponto para você!
Mas você ganha mesmo, e de lavada quando percebe que:
Quem realmente importa não pede satisfações, enxerga a atitude;
Não espera explicações, a compreensão está no olhar, e, mesmo que seja dada, não será explicação, mas abrir a alma;
Comungar a vida;
Repartir o que parecia indivisível;
Dar o que nem sonhava ter;
Receber o que parecia inalcançável;
Ser abençoada sem ver o gesto;
Mas, se não for assim, levante, dê um sorriso e caia fora.
Afinal, você merece.

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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Mulheres Interessantes

Que atire a primeira pedra aquela que nunca, nem uma vez sequer, tenha procurado um defeito, qualquer coisinha mínima nessas mulheres lindíssimas com quem a mídia nos afronta diariamente.
Acredito que o risco de encarar uma multidão feminina munida e pronta para o ataque não seja muito grande, mas tiro meu chapéu para as que começarem o apedrejamento.
Da minha parte, esclareço que nunca fiquei procurando imagens dessas deusas para então, numa versão um tanto desvairada de Sherlock Holmes feminina, com uma lupa, achar as falhas.
Mas, devo confessar que algumas vezes, principalmente durante a adolescência me deparei com elas em fotos – os deuses não foram cruéis a ponto de me colocarem ao vivo diante delas – olhei atentamente em busca de uma falha mínima. Uma falta de pigmentação na sola do pé que fosse! Nada.
Como tudo nesse mundo, a adolescência passa, você acaba se conformando com o número de buscas frustradas e, afinal, tem que cuidar de sua vida.
Já adulta você gosta do que vê quando olha no espelho e percebe que outras pessoas gostam do que vêem quando olham para você. Sem exageros, mas uma visão realmente agradável.
Algumas vezes sai de casa com jeans, camiseta e sem maquiagem – como tantas mulheres divinas declaram em entrevistas – consciente que assim mesmo atrai alguns olhares, não de susto, mas de interesse.
Sim, mas para chegar até aí você já trilhou um longo caminho e descobriu que não há um padrão rigoroso para o belo e que este, sozinho no ser humano acaba sendo pouco.
E mais; descobre o prazer e a satisfação de ser uma mulher interessantemente ...bela.
E já que se trata de beleza, um belo dia, você está na sala de espera do médico, dentista ou mesmo em casa folheando uma revista e dá de cara com uma declaração da Sharon Stone assumindo suas celulites; Gisele Bündchen afirmando que não se considera bonita e que bonita mesmo é a Carolina Dieckmann; que, quando adolescente, Glória Pires foi considerada por Daniel Filho sem futuro na televisão por não ser bela.
Não contendo o riso pensa: onde estavam essas declarações quando eu tanto precisei delas? Mas será que precisava tanto mesmo?

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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Conversa no Aeroporto

Há algum tempo tive a oportunidade de conversar com um senhor de quase oitenta anos. Estávamos no aeroporto de Curitiba aguardando a chamada para embarque. Confesso que estava tão cansada e ansiosa para voltar para casa, que só notei sua presença quando falou:
- Impressionante a capacidade que o ser humano tem de inverter tudo – Como que em resposta ao meu olhar um tanto surpreso, continuou:
- Usa e trata como descartável o que é para ser amado e cuidado e valoriza e se apega ao que foi feito para ser simplesmente usado e pode ser trocado. - Ainda tomada pela surpresa, sorri para ele sem nada falar. Acredito que animado pelo meu sorriso, o simpático senhor, ajeitando-se na poltrona, continuou:
- Você pode usar um carro até que ele fique velho ou, se tiver sorte e puder, até que apareça um modelo mais novo.
- Você pode usar um computador até que outro com mais recursos apareça no mercado e esteja dentro de suas possibilidades - esse é trocado com uma rapidez assustadora!
- Você pode usar um batom que deixe-a especialmente mais bela, até conseguir tirar um último resquício de cor e, então, joga fora.
- Você pode usar aquele creme caríssimo que promete milagres até não conseguir mais tirar nem um mínimo sinal de dentro do frasco e, então, você joga fora.
- Tem até algumas coisas que você resiste em jogar fora: aquela camisola ou camiseta que de tão usada é uma delícia para dormir; sozinha, por favor! – Nesse ponto não consegui disfarçar minha surpresa e menos ainda meu sorriso mais amplo enquanto analisava o falante e singular senhor vestido com um terno, colete, gravata e tinha nas mãos uma bengala.
- Aquela cueca, que, de tão velha já está meio transparente, mas tão confortável pode ser usada sempre que ele não estiver com “ela”, é claro! – A cada palavra daquele senhor minha surpresa aumentava.
- Pensando bem ela pode até ficar sexy naquela camisola ou camiseta já velhinha e ele naquela cueca que, afinal, por estar tão gasta, mostra mais seu corpo.
Nesse ponto ele olhou-me atentamente e disse:
- Ora, não me olhe com essa cara de assustada. Eu não nasci com oitenta anos, mocinha! – falou com um enorme sorriso. Sorri de volta para ele e antes que começasse a tentar justificar meu espanto ele continuou:
- Mas, há coisas que não ficam obsoletas e que não podem ser simplesmente trocadas;
- Um amor verdadeiro; a relação pode acabar, mas o amor estará sempre lá, naquele momento em que alguém amou e igual a ele não haverá outro.
- Uma amizade; você pode ter várias, mas uma jamais será igual à outra e nem todas serão verdadeiras.
- Respeito; você vai sentir falta se não demonstrarem por você.
- Carregue sempre isso com você, pois tudo mais passa. O que não vai passar é a falta que você vai sentir dessas três coisas se não existirem em sua vida.
Falando isso levantou-se e segurando minhas mãos desejou:
- Que a sua viagem seja tranqüila agora e repleta de Amores a sua jornada de vida.
Até hoje me pergunto se aquele senhor tão especial existiu ou se é parte de um sonho num cochilo descuidado. Mas, nunca esqueci seus conselhos.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Sapato Velho

Em mais de vinte anos Manuela pouco mudou. É esse tipo de pessoa que o tempo poupa de algumas marcas. Atenção, eu friso, algumas.
Ela sempre foi destituída de atributos físicos, os traços não eram harmoniosos não levando em consideração, aqui, padrões de beleza.
Quem a conhecia, logo nos primeiros minutos chegava à conclusão de que não era bela, mas tinha gentileza e educação extremas e raras.
Fazia amizades com uma facilidade extraordinária e por onde ela passasse logo se ouvia; “Como é boazinha!”
Distribuía carinho, consolo, ajuda material ou não, a quem precisasse, sempre com a voz doce, um carinho, um afago. Era maternal com todos independente de idade ou sexo.
Orgulhava-se das inúmeras amizades que ia angariando vida afora e sorria satisfeita quando ouvia o quanto era “boazinha.”
Apaixonou-se perdidamente incontáveis vezes; sempre por grandes amigos e confidentes, alguns de beleza ímpar, muitos com relacionamentos estáveis e outros tantos companheiros de suas melhores amigas. Portanto, buscou sempre amores impossíveis.
Muitos deles sequer imaginavam o sentimento que ela nutria. Até o momento em que ela lhes contava e, aí, estabeleciam-se duas situações dramáticas: o amor e a certeza de não ser correspondida.
Era notório o fato de que ela buscava sempre o “impossível”, pois sendo desde o início impossível, ela não correria riscos.
Não haveria risco de ser rejeitada, pois não dera certo por inúmeros impedimentos e não por não ser correspondida. Por outro lado, desapareciam, também, os riscos que uma relação íntima envolve.
E por tudo isso ela passava sendo sempre “tão boazinha”.
Todos que a conheciam sabiam que ela gostava e considerava “sua” a música “Sapato Velho”, cantada por “Roupa Nova” e composta por Cláudio Nucci e Paulinho Tapajós.
Tânia, uma amiga a quem fazia confidências chamava sua atenção, com insistência, para essa auto-sabotagem que ela usava como recurso para proteger-se de amores não correspondidos, relacionamentos que poderiam acabar, sofrimentos, sim, mas também Vida!
Ela negava e recusava-se sequer a cogitar tal idéia, mas agradecia à amiga dizendo que “quem tivesse uma amiga assim não precisaria nunca de analista”.
E seguia a vida, tendo como tema a mesma música e sendo “boazinha” tanto com os amigos quanto com os amores que, muitas vezes, eram os mesmos.
Um dia Tânia foi à casa dela para entregar seu convite de casamento. Ao ser atendida pela empregada, subiu direto ao quarto onde sempre conversavam.
A porta estava aberta e lá estava Manuela sozinha, falando baixo como que praguejando mesmo e raivosamente rasgando fotografias. Em cima da cama, uma foto ampliada do noivo de Tânia, tirada no último churrasco.
Percebendo com um susto a presença da amiga, Manuela, explicou nervosamente que estava livrando-se de recordações de amores antigos.
Falava enquanto colocava os pedaços rasgados em um saco de lixo, mas sem a rapidez suficiente para impedir que a amiga visse seu próprio rosto estampado em um dos pedaços.
Ainda tentando sorrir de forma “boazinha”, acompanhou o olhar de Tânia para a foto ampliada em cima da cama.
Os versos martelavam a cabeça de Tânia: “Você lembra, lembra!/ Daquele tempo/ Eu tinha estrelas nos olhos...”Nesse momento Tânia enxergou as marcas invisíveis que o tempo deixara em Manuela; enxergou o rancor, a amargura, a ira e o desamor. Havia tudo lá, menos a bondade.
Enquanto olhava a cena a música passava insistente pela sua cabeça: “Prá poder buscar/ Flores-de-maio azuis/ E os seus cabelos enfeitar...”
Em pouco tempo Tânia começou a notar que alguns amigos comuns estavam afastados dela; outros passaram a evitá-la e Manuela continuava extremamente “boazinha” quando encontravam-se por acaso.
Tânia até tentou conversar com amigos mais próximos, desistindo ao perceber que não era “boazinha” o suficiente para combater o veneno já disseminado. Essa constatação, aparentemente em total insensatez, deu-lhe um alívio imenso.
Com o tempo, perderam o contato e hoje Tânia tem, ainda, “estrelas nos olhos”, mas escapa rápido quando conhece uma pessoa muito “boazinha”.
Frequentemente se pega pensando por quanto tempo uma pessoa consegue permanecer, ilesa, à espera, como um sapato velho...

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Como Poderia Ter Sido “Se

Sabe, na sua ausência, adquiri estranhos hábitos e aprendi coisas exóticas como, por exemplo, rir de mim mesma, das pequenas besteiras e até do meu jeito desajeitado.
Hoje, xingo sem pudor quando bato o joelho na poltrona que insisto em deixar no mesmo lugar. Não precisa fazer essa cara de horror, pois o máximo que falo é um “merda” e, sabe que ajuda a aliviar a dor?
Certo, repito o palavrão quando vejo a mancha roxa que ficou, confesso, mas dessa vez é quase um sussurro, pois a dor já nem é mais sentida.
Agora corro como uma maratonista à procura do “sem fio” quando toca o telefone, sem receio de ser criticada, permitindo-me a estranha mania de não atender em outro aparelho.
Você não entende isso, eu bem sei, mas as manias são manias justamente porque não prescindem, necessariamente, de explicação.
Ah, sim, a poltrona voltou ao lugar em que eu sempre quis que ficasse, pois no outro, aquele em que você colocou perdeu sua graça e ficava quase escondida. Prefiro continuar vulnerável às manchas roxas.
Cultivo, agora livremente, o hábito de olhar CD’s nas tardes de sábado, mas agora, compro aqueles que quero. Sabe, confesso que, na primeira vez em que fiz isso sem você, estranhei a ausência de alguém tentando convencer-me a levar outros, diferentes dos que eu tinha escolhido.
Ainda estranho, também, não ouvir alguém dizer que não entende porque eu gosto de determinadas músicas sem conseguir expressar um argumento válido ou defeito dos meus Chicos, Caetanos, Djavans, Toquinhos, Vinicius, Ritas, Marisas, Elis e...bom, listar todos seria um desafio ao qual me nego.
Penso que, de resto, pouca coisa mudou; ouço e retribuo as simpáticas brincadeiras do porteiro da manhã, conheço, agora pessoalmente, o do turno da noite, troco lâmpadas queimadas, tenho uma caixa de ferramentas, leio o jornal onde e quando quero e, às vezes, penso em como poderia ter sido “se”. Como acabei de fazer agora.

A Vida Pode Ser Maravilhosa...?

Tenho certo cuidado com esses rompantes de “passar a vida a limpo”, fazer um “balanço geral”, “listar perdas e ganhos”. Por covardia, assumo, pois não sei se quero encarar o resultado.
O que eu sei é que quando as coisas ficam complicadas passamos a listar os problemas priorizando a necessidade e aí vem a saudade do tempo em que a lista era feita priorizando desejos.
A etapa seguinte é a lista das coisas que desejamos possuir novamente, feita de acordo com a intensidade da falta que sentimos de cada uma que já tivemos e perdemos.
Bom, até aqui a vida ainda está razoável, pois ainda conseguimos fazer listas o que significa que nem tudo está perdido ou ainda conseguimos enxergar a famosa luz, mesmo que seja uma pequena claridade, no fim do túnel.
A luz desaparece, a coisa fica preta, a ficha cai e todos os alarmes são acionados quando:
O orçamento grita em agonia antes da metade do mês;
Adquirimos o estranho hábito de velar insones o sono dos filhos que dependem de nós;
Conseguimos ficar sentados em frente à TV, como zumbis, olhando sem ver aquele insuportável programa de auditório;
Não fazemos nem cara feia ao saber que o parente “mala” e fofoqueiro vem nos visitar.
Nesse ponto vem a saudade da época em que a dor que sentíamos era por um amor não correspondido ou que se foi e nos damos conta de que sequer lembramos mais o que é tristeza por um amor perdido ou o frisson que um beijo pode causar.
Queremos sentir de novo como é ser filha, mas o pai não está mais logo ali adiante e a mãe, nessas inversões loucas da vida ou de Deus, virou filha de novo.
Queremos ouvir de novo o som da nossa própria risada, que já nem lembramos como é.
Queremos, enfim, encontrar um jeito de achar que a vida pode ser maravilhosa.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

É só um pão!

Sexta-feira, final de tarde, cansada depois de um dia de trabalho um pouco difícil, chego em casa, jogo-me no sofá já tirando os sapatos, quando lembro que havia esquecido de comprar pão.
Respirei fundo, lembrei de tudo que estou lendo sobre a importância de emanar boas energias, não superestimar pequenas contrariedades, ter sempre pensamentos positivos e, colocando em prática, argumentei comigo mesma que afinal eu tinha que caminhar apenas três quadras até a padaria.
Coloquei os sapatos e lá fui exalando bons fluidos, lindas energias e quase conseguindo ver minha aura belíssima.
O elevador demorou um pouco e quando parou no meu andar estava lotado, o que não é comum. Quando digo “lotado” não estou apenas usando a expressão empregada usualmente; digo “lotado” no sentido literal da palavra.
Como obviamente não entraria no elevador, sorrio, até por uma questão de cordialidade para as pessoas que estão no elevador e enquanto a porta se fecha noto que nenhuma delas retribuiu a minha simpatia. Bom, penso eu, é compreensível.
Como são dois elevadores “sociais” fico aguardando que o outro pare no meu andar.
Nesse momento, a mulher do síndico – sim, eu moro em frente ao apartamento dele – aparece e avisa que o outro estava “em manutenção”. Por uma questão de justiça devo dizer que o síndico do meu prédio é uma pessoa extremamente simpática e excelente administrador.
Vou pelo “de serviço”, disse eu, sorrindo agradecida pela informação. Ela sorriu de volta, mas pareceu aquele tipo de sorriso “amarelo”. Enquanto pensava sobre isso o elevador chegou e ela apressou-se em abrir a porta. A visão que tive esclareceu minhas dúvidas sobre aquele sorriso.
Havia um carrinho, desses em que se carrega compras de mercado, cheio. Havia também sacolas ocupando o espaço em torno do carrinho e outras, sobrepostas a elas.
A mulher olhou-me e sua expressão variava do desespero a um pedido de desculpas de quem nem sabe ao certo que culpa tem.
Sorrindo e tentando dar ao sorriso um significado do tipo “ah, isso não é nada”, mas não muito confiante do meu sucesso, comecei a ajudá-la na empreitada de retirar todos aqueles volumes de dentro do elevador.
Após uma breve análise do “arranjo” de sacolas, começamos pelas que estavam por cima da pilha.
Confesso que senti um certo desespero, como uma leve vontade de bater a cabeça na parede ou arrancar umas mechas de cabelo quando, ao retirar as primeiras, percebi que havia um número muito maior de sacolas do que eu imaginara, espremidas em cada mínimo espaço daquele elevador.
Sem parar para pensar – a idéia de bater a cabeça estava ficando mais insistente – comecei a colocar as sacolas no chão. Revendo a cena mentalmente, creio que ataquei as sacolas como uma arqueóloga louca que resolvesse fazer a escavação da tumba de um faraó de nome impronunciável com as próprias mãos.
Em algum momento do “tira sacola do elevador/coloca sacola no chão” notei que só eu estava pegando as sacolas e, as que eram retiradas não estavam acumulando-se no corredor.
Percebi, então, que a mulher, numa decisão unilateral, pegava as sacolas e levava direto para seu apartamento. Confesso que cogitei avançar sobre ela e nocauteá-la com o maço de aipo em uma das mãos e o amaciante na outra, mas ponderei que seria melhor liberar o elevador.
Quando tirei a última caixa de leite longa vida, estava descabelada, suada, a blusa manchada por um líquido rosa que, pelo cheiro, parecia ser iogurte de morango.
Encostada na parede ainda ofegante pelo esforço ouço o familiar barulho do elevador social chegando. A porta se abre e sai o síndico e Dona Nena, moradora do 12º andar.
O síndico olhava para mim de forma estranha, desde os cabelos desgrenhados até os sapatos enfeitados por uma gota rosa, do mesmo tom da mancha na minha blusa.
Meu bem, disse-me Dona Nena, olha só o que eu trouxe para você. E mostrando um enorme pão feito por ela mesma completou: “você trabalha tanto e está tão magrinha!”
Eu comecei a chorar e, não como choram nos filmes, naquelas cenas lindas, lágrimas escorrendo pelas faces. Não, eu soluçava alto enquanto me jogava nos braços de Dona Nena que, me embalando dizia:
“Mas é só um pão!”

O Que Irrita Fernanda ou Como Sobreviver ao Domingo

Domingo foi um daqueles dias que se arrastaram melancólicos em que todos os sentimentos indesejados ganham uma proporção gigantesca.
Angústia, saudade, tristeza decepção viram monstros com as bocarras abertas prestes a nos engolir.
Num domingo assim, a tristeza pelo pé na bunda que pensávamos estar superado volta com força total, a frustração pela falta de reconhecimento por um trabalho bem feito é lembrada a todo instante, a rispidez do filho distante ao telefone faz com que pensemos até em morte – extremismo, eu sei, e passa logo. A idéia de morte não a mágoa.
E assim foi o domingo. O dia passou e não sei o que irrita Fernanda ou com quem conversou Marília.
Tampouco os filmes, os “longas”, prenderam minha atenção, então tentei as séries com seus tribunais, investigações e relações delicadas. Mas enquanto as imagens passavam diante dos meus olhos, na minha mente passava a vida.
Conversei comigo mesma e, confesso, o papo não foi dos melhores. Já estive em melhor companhia.
Atravessei o dia ansiando pelo seu fim, pelo anoitecer. Veio a noite, mas o sono perdeu-se pelo caminho; mais pensamentos sombrios na noite insone.
Mas, como drama não é meu gênero e, embora tenha meus ataques, tanto de choro quanto de riso e, mesmo não chegando à comédia, escolho a leveza
Veio o dia. Olho pela janela e, depois de pedir desculpas a Deus pelas palavras e pensamentos um tanto grosseiros, como uma Poliana meio passada, na idade e pelo cansaço da noite mal dormida penso: “Venci um domingo; não será uma segunda a me derrubar”.
E continuo sem saber o que tanto irrita Fernanda...

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