sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Despertar

Olhava fixamente para as mãos. Suas mãos.
O rosto não guardava qualquer expressão, nem um esboço de tudo que carregava no peito, nem dos pensamentos que, como em desenfreada corrida, ocupavam sua mente.
Aquelas mãos, suas mãos, sempre ocupadas em um afago, um consolo, um cuidado, hoje desnecessárias, esquecidas, como que vazias.
O faz de conta em que se refugiara não lhe dava mais acolhida e o aperto em sua alma não mais permitia que fingisse não perceber a indiferença, o esquecimento, a crueldade do abandono.
Agora a necessidade premente de entender, descobrir, precisar no tempo o momento em que aquelas mãos, suas mãos, deixaram de ser procuradas.
Não, foi mais que isso. Foi o desprezo, a sordidez da falsa e conveniente ignorância, a covardia em não reconhecer todo o bem recebido daquelas mãos.
Consumia-se em pensamentos, com os olhos secos, pois nem as lágrimas, abençoado alívio, mesmo que passageiro, vinham em seu auxílio.
Ainda observando aquelas mãos, suas mãos, teve a certeza de que tudo ainda estava lá para ser ofertado, embora não mais a quem antes de tudo usufruía, a quem nada mais de suas mãos receberia.
E, dando-se conta de que nada perdera, que tudo ainda estava lá, em suas mãos, finalmente chorou
Chorou de tristeza por aqueles que tardiamente lembrariam e de alegria por si e por todos que ainda estavam por vir.
Não, jamais viveria a tristeza de ter as mãos vazias.

sábado, 23 de outubro de 2010

Ciranda

“Como se fora
A brincadeira de roda
Memórias!
Jogo do trabalho
Na dança das mãos
Macias!”
(Gonzaguinha)

Nada como o cheiro, o aroma e a música para reavivar lembranças e até mesmo impedir o esquecimento algumas vezes tão desejado.
Hoje, não por acaso, um trecho da música “Redescobrir” de Gonzaguinha.
Na tentativa de espantar a melancolia que se fortalece nesses dias nublados, cantar sem compromisso com a afinação, redescobrindo memórias já tantas vezes visitadas, as mãos dançando na escrita.
No peito o desejo de poder ser mais nessa ciranda da vida, mas, mesmo não sendo, e com a prosa, mesmo que talvez fraca, a persistência vence.
E quando, frustrada pensa ter-se calado a ciranda, ela surge aproveitando-se de uma distração do silêncio. O burburinho e o fervilhar de idéias se faz ouvir. Discreto, sussurrado aqui, ali e ao redor.
Não, não se cala a ciranda, a prosa; elas são movimento e se fazem ouvir, ainda que baixinho, sorrateiras e sem fronteiras.
E, assim volta a esperança de “Renascer da própria força, própria luz e fé.”

Blog Where: Histórias...

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Histórias...


Filha mais nova dentre quatro mulheres, sete anos me separam da terceira, onze da segunda e catorze da primeira. Todas dirão, com certeza, que não havia necessidade de tantos detalhes, com uma delas complementando que sou prolixa, mesmo.
Muito nova já constatei que minhas irmãs eram dotadas de uma beleza singular; destacavam-se em qualquer ambiente, atraindo sempre os olhares masculinos e femininos.
Uma possuía pernas imbatíveis além de curvas com perfeitas saliências, outra era comparada à Úrsula Andress, e um corpo de violão, para completar, fora dado à terceira.
Junto delas, era uma criança falante, atenta a tudo que faziam, vestiam e, principalmente, aos segredos que trocavam. Alguns eu acabava descobrindo, outros elas inventavam e me contavam, para terem um pouco de sossego.
Às vezes, observava meu corpo de criança no espelho, os ossos salientes, pernas finas e vinha a certeza desanimadora que, se um dia atraísse os mesmos olhares, seria em função da diferença, do contraste.
Essa crença era tão forte que me fazia sentir raiva do infeliz que dissesse que eu era bonita, ou fizesse qualquer alusão à beleza das “quatro” filhas de meus pais.
Mas isso durava pouco e logo estava eu acelerando o tempo, e me via usando as roupas que mais gostasse, de cada uma delas. Fazia uma montagem de mim mesma adulta; rosto de uma, corpo de outra e cabelos e pernas de outra ainda.
Em meio a tudo isso, um irmão, quatro anos mais velho, para quem elas me empurravam vez ou outra. Provocador, fazia tudo para me irritar, mas tinha doçura suficiente para, com o mesmo empenho, me alegrar.
Em casa vivia num mundo de vestidos, maquiagens e sapatos misturado com técnicas e dribles de futebol, construção de carrinhos de rolimã, mangas e jabuticabas devoradas nos galhos mais altos das árvores.
Meu pai estava sempre bem humorado, sorrindo e entrava em toda brincadeira que eu iniciasse. Já minha mãe não tinha o mesmo humor e os sorrisos eram mais raros e disfarçados, pois temia que ficássemos mal acostumados.
De duas coisas eu gostava especialmente: observar e imitar minhas irmãs e material escolar novo, sempre comprado pelo meu pai, menos resistente que minha mãe à minha insistência.
Olhar minhas irmãs era como deleitar-me antecipando meu futuro. Envolver-me no cheiro de cadernos e livros novos, lápis e canetas incomuns era deliciar-me com meu presente.
Inventava histórias que escrevia e escondia no porão da casa, até que um dia meu irmão descobriu. Prometeu, jurou guardar segredo e, talvez, percebendo meu desespero, acredito que tenha cumprido a promessa
A descoberta do meu esconderijo, somada ao medo que eu sentia quando ia sozinha ao porão, transformou a preservação do meu segredo numa missão extenuante.
Passei a guardar os papéis junto com meu material escolar para que ninguém em casa os visse. Chegando ao colégio escondia-os sob o uniforme para que as freiras não encontrassem.
Um dia, ao voltar da escola escondi minhas histórias dentro da fronha do meu travesseiro e só me lembrei delas na manhã seguinte quando peguei o material para fazer a tarefa de casa.
Voltei apressada para o quarto, mas do corredor vi minha mãe com os papéis nas mãos, lendo e, ainda hoje não sei se rindo ou apenas sorrindo.
Também não sei se ela me viu ou não, mas nenhuma das duas tocou no assunto e quando eu fui dormir a roupa de cama havia sido trocada, mas minhas histórias estavam lá.

Agora, adulta, gosto do que vejo quando me olho no espelho e, também, de comprar cadernos, livros e do cheiro inconfundível de papel novo.
O cheiro, os aromas são para mim a mágica máquina do tempo que me leva para aqueles aconchegos, portos seguros que só a meninice é capaz de conhecer plenamente.
Histórias continuo a escrever, e da mesma forma: em segredo, assim como acabei de fazer.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Neurótica, eu?

Nos primeiros meses de vida dos meus filhos, eu ficava o máximo de tempo possível olhando para aquele serzinho minúsculo, atenta a cada detalhe, a cada mínima expressão.
Não escondia de ninguém a certeza de que a sobrevivência dele dependia única e exclusivamente de mim, afinal, somente eu, a mãe, conseguiria atender as necessidades do bebê, trocar a fralda, dar banho e embalar do jeitinho que ele gostava. E disso eu tinha plena convicção.
Isso é cuidado, zelo, certo?
Visitas de pessoas que sempre tinham palpite e receitas de chazinhos e remedinhos para filho alheio não faltava. Assim, todos que tentavam de alguma forma interferir ou minimizar esse relacionamento tão especial eram devidamente ignorados.
Algumas pessoas me consideravam um tanto neurótica. Algumas amigas, declaradamente e outras não tinham coragem de falar ou disfarçavam bem.
Claro que à noite, principalmente naquelas noites em que o bebê ficava muito quieto por um período longo, digamos, duas horas, ia ver se estava bem, mexia nele, examinava as roupinhas, os lençóis, à procura de algo que pudesse incomodá-lo.
Bom, também checava a respiração, tocava de leve para vê-lo movimentar-se, essas coisas que todas as mães fazem apenas por precaução, é claro.
Às vezes, acordada tinha sonhos inconfessáveis, como o de ser casada com um pediatra. Ficava imaginando a vida maravilhosa que essas mulheres de sorte tinham! A felicidade suprema de ter à mão e ao alcance do meu telefone esse ser fantástico que responderia cada pergunta que eu fizesse sem aquele olhar em parte condescendente e já minimamente paciente.
Mas não, tinha que ser casada com um advogado que tentava, sem muito sucesso, me convencer que assistir um filme na TV, claro, não colocaria em risco a integridade física e emocional do meu bebê. Com a babá eletrônica do meu lado, obviamente!
Conforme iam crescendo, as minhas atenções e meus cuidados se adequavam ao ritmo da minha vida, mas também aos progressos e, claro, às novas necessidades deles.
Hoje, com as mais amigas, relembro algumas situações e damos boas risadas.
O que não confesso, nem a elas, é a saudade que sinto daquela fase e que me invade quando, com a mochila nas costas ganham a rua.
Um beijo de despedida e, em resposta às minhas recomendações ganho um sorriso divertido acompanhado de um “relaxa, mãe”.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Por ora...

Por ora eu me contento.
Para espanto de muitos e alegria de poucos, nasci teimosa. E a vida, que nada deixa escapar, me acompanha nessa teimosia e às vezes até lhe ouço a risada empurrando-me, fazendo-me prosseguir.
Essa expressão tão usada de matar um leão por dia não me agrada por tudo que ela carrega em si; o ato de tirar a vida e o leão que, convenhamos, sequer sonha com minhas agruras.
Então, quando chega o momento, não necessariamente ao final do dia, em que me dou conta que venci o monstro que me assombra a cada despertar, eu festejo sozinha e depois divido com poucas e caríssimas pessoas.
Comemoro cada mínima vitória sorrindo para a imagem no espelho, fazendo uma prece, agradecendo a Deus, ao universo e, nesse momento, eu me contento.
Por ora eu me contento, pois assim como é certo que outros monstros surgirão, o mesmo acontece com minhas aspirações que me fazem ver a vida que em tantos momentos pensei ter me abandonado.
É então que tudo se soma e se mistura: a alegria genuína dessas poucas pessoas que me são tão caras com a risada contagiante da vida me chamando para o mundo e me fazendo querer e acreditar que há muito mais logo ali adiante.
E acreditando, por ora me contento. Por ora...

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Assim Como na Vida...

Na elegante loja vendiam móveis de extremo bom gosto e preciosidades antigas.
No galpão que ficava na parte detrás da loja eram restauradas valiosas peças e fabricavam outras requintadas e caras.
Ela olhava a enorme e imponente estante numa mal disfarçada admiração invejosa e vã tentativa de aparentar desprezo.
- Ora - pensava – um brutamontes, isso sim!
Desviando o olhar encarou altiva o movelzinho de cabeceira esquecido em um canto, mais parecendo um criado que, mudo, poderia nem ser notado.
- Quanta insignificância – resmungava para si mesmo a soberba.
Passeando os olhos pela oficina deparou-se com a pequena mesa que há muito tempo deixara de ser o centro das atenções e logo ao lado viu o aparador, cujo brilho irreparável berrava aos olhos que o fitassem.
- Cafonalha ! – gritou ela em pensamento – aquilo era uma aberração, letal a olhos desprotegidos!
Em contraste ao ofuscante monumento ao mau gosto, lá estava a poltrona que, mesmo esfarrapada mantinha aquela irritante dignidade.
A cômoda até que tinha lá seu charme, a despeito de assemelhar-se a uma matrona beirando a obesidade.
Seus pensamentos foram interrompidos pelos ruídos dos operários que voltavam, aos poucos, da tranqüilidade e torpor que beirava o cochilo sedutor do horário de almoço já devorado.
O trabalho quase acabado, aquele mal começado e o material para os ainda não iniciados estavam separados numa desordem cuja organização só os trabalhadores compreendiam.
Ela, uma cristaleira de extremo bom gosto e delicadeza, expressos em seus finos vidros e madeira nobre de contornos sinuosos e raros, olhava com horror aquelas mãos grossas e de cor marcada por anos de trabalho pesado.
- Como poderiam essas mãos rudes pretender a habilidade de tocá-la e realizar os pequenos reparos em seus delicados encaixes? – pensava ela sentindo um calafrio de horror.
Apavorada, acompanhou os movimentos de um deles em sua direção já antecipando o desastre ultrajante de ver-se toda mal consertada e sua elegância perdida.
Observou o homem pegar o martelo e, com extremo alívio, viu-o virar-se e segurar firme com uma das mãos um velho estrado de suporte de colchões.
- Ora, que conserto haveria para aquelas medíocres ripas já enfileiradas e devidamente fixadas por simples e banais pregos? Se bem que alguns, de tão velhos e feios, já deveriam estar no lixo!– ponderou em silêncio.
Notou que o homem apontava um martelo para um deles que, saliente, desobedecia à rigorosa simetria dos demais.
- Quanto atrevimento – pensou irritada a esguia guarnecedora de finos cristais – prego teimoso! Não sabia o quanto incomodava assim, com a cabeça em total desalinho às demais? Um prego tinha que se portar de maneira que nem a mais delicada das mãos notasse sua presença na madeira!
Acompanhava, com satisfação incontida, o movimento da mão do homem martelando cada vez com mais força aquela ousada teimosia que, para seu assombro, ainda resistia.
Ela não teve tempo de ver o pedaço de madeira do estrado que, partindo-se com a força das marteladas no prego renitente, foi atirado como se de uma catapulta e acertando-a em cheio, transformou-a num amontoado de vidro e madeira.
Deixando de lado o martelo, o homem começou a recolher os pedaços de madeira jogando-os num canto qualquer.
Em seguida, com vassoura e pá de lixo retirou do chão os pedaços de vidros daquela imitação grosseira e barata que viera para a oficina em meio às relíquias a serem restauradas.
E o prego, ainda sobressaindo-se aos demais, foi esquecido. Não por muito tempo, ele o sabia.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sobre gatos e...Gatos!

Estava olhando as vitrines das lojas numa ruazinha agradável. Olhava roupas e acessórios que os olhos amavam, mas a carteira impunha algumas restrições.
De repente ouve a voz familiar de uma conhecida de longa data. Na verdade havia um grau de parentesco que mais parecia uma estrada cheia de bifurcações e para explicá-lo era necessário uma espécie de croqui.
Assim, o parentesco só é mencionado aqui para que se tenha a idéia exata da repercussão que o diálogo provocou.
E pensar que teve início de forma totalmente inofensiva e prometia uma série de banalidades!
- Oiêeee, menina por onde você anda? Não vejo você há séculos !!!
- Pois é, correria, trabalho, casa, filhos...
- Ahhh não, você está brincando !!! Não sai mais? Como pode ???
- É, tenho andado tão cansada ultimamente que só quero ficar em casa nos finais de semana.
- Mas me conta, vai, e aquele monte de gatos?
- Monte de gatos? Não você deve estar confundindo com a minha irmã que tem seis. Eu agora só tenho uma gata.
- Como? Uma gataaaa? – perguntou a outra, olhos arregalados. – Imagina! Eu lembro que depois de sua separação tinha sempre um monte de gatos em volta!!!
- Não, você está fazendo confusão, era um monte de cachorros! – respondeu, estranhando a teimosia da outra.
- Cachorros...todos?! – a outra, incrédula, parecia fazer um esforço enorme para articular as palavras enquanto a olhava com uma estranha expressão.
- Sim – respondeu ela já um tanto irritada com a chatice da conversa – cheguei a ter cinco em casa.
Aproveitando a pausa boquiaberta da outra e querendo acabar com a insistência desagradável, tratou logo de esclarecer:
- Quando era solteira tinha a minha gata que sumiu logo que me casei e não consegui mais encontrá-la. Quando o casamento acabou só fiquei com cachorros, um mais lindo que o outro, mas davam uma canseira!
- Não acredito!!! – retrucava a outra, olhos ainda mais abertos e a pele morena alternando do pálido ao rosado.
- Verdade, cansei ! Deixei a casa, fui para um apartamento só com a minha gata. É um paraíso; não faz bagunça, é carinhosa e fica quietinha do meu lado.
A outra continuava com aquela expressão estranha e já não falava mais nada.
Agarrando-se à oportunidade de livrar-se daquela conversa chata ela despediu-se e caminhando pensava se a outra estaria com algum problema; afinal, o que deu nessa mulher? Não parava de fazer perguntas e ainda queria saber mais dos bichos do que ela própria? Francamente, ô conversinha chata!
Enquanto isso, a outra, com a boca ainda aberta, pensava; o mundo está perdido mesmo! Por essa ninguém esperava: essa, com cara de sonsa, agora só quer saber de mulher e a irmã com pose de certinha com seis homens! Imagina que ela guardaria essa bomba até o final de semana no clube!
Entrou no carro já saboreando o impacto que a novidade teria quando ela começasse a usar o telefone.

domingo, 8 de agosto de 2010

A Senhora, a Mulher e a Criança

A mulher preparava o café e ao lado dela, na cozinha, a menina olhava a velha senhora sentada na poltrona da sala olhando a televisão. Olhava sem ver, a menina o sabia, enquanto observava o rosto marcado, de expressão carregada.
Não eram as rugas, profundas e semelhantes a sulcos irregulares feitos na terra por um arado conduzido sem habilidade que tornavam a expressão amarga de descrença e desesperança. Não, ela sempre estivera lá.
A criança lembrava-se bem do mesmo rosto quarenta anos antes, sem os sulcos, mas estampando a tão familiar quanto desagradável expressão.
Lembrava-se e sentia ainda aquela tristeza, aquele aperto no coração que a convivência com a velha senhora fazia ser tão profundos. E junto vinha a angústia, a culpa, pois a velha senhora, sua mãe, sempre tratara bem a menina, afinal atendia a todas as suas necessidades enquanto ensinava-a que dinheiro não caía do céu, que a vida era dura e que algumas pessoas nasciam com sorte, outras não. Ponto.
A menina desviava os olhos para a mulher que estava agora terminando o café e preparando a mesa para o lanche da velha senhora na esperança de que ela olhasse de volta, esboçasse um gesto, um carinho e, quem sabe, com sorte, desmentisse toda a tristeza que apertava-lhe o peito.
Observava os gestos mecânicos da mulher na execução de uma tarefa diária que de tantas vezes repetidas não demandavam qualquer raciocínio.
O rosto da mulher trazia a expressão de todos os sentimentos que oprimiam a menina há tanto tempo, só não a esperança de ser vista, cuidada, acarinhada que ainda se veria caso se olhasse nos olhos da criança.
A menina queria chamar a atenção da mulher para si; quem sabe quebrando a louça, puxando a toalha que cobria a mesa, derrubando o café. Qualquer coisa que tirasse a mulher daquela letargia, que a fizesse desmentir tudo aquilo que a velha senhora repetia incansavelmente.
A menina observava a senhora caminhando com dificuldade até a mesa, servindo-se de café e bolo e, antes mesmo de provar, reprovando o sabor e lamentando que nenhuma das filhas havia aprendido a cozinhar como ela.
Seria uma cena conhecida, que se repetia todos os dias, se naquele momento a mulher, ignorando a velha senhora, não tivesse olhado diretamente nos olhos da menina.
As lágrimas desciam pelo rosto das duas em perfeita sincronia e, sem qualquer movimento, a mulher abraçou a criança e embalando-a sussurrava em seu ouvido que as verdades da velha senhora não seriam delas e, enquanto fundiam-se, mulher e criança, esta sentia desaparecer de seu peito toda a angústia e medo do futuro.
Ainda imóvel e confortando a criança a mulher olhava a velha senhora, sua mãe, com um misto de amor, ternura e pena.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Quem Gostaria?

Recebi um e-mail que, com certeza, já circulou muito. Tratava de algumas regras básicas de educação. Não uso “etiqueta” porque é uma palavra que definitivamente não me atrai, remete a algo rígido e chato.
Voltando às regras contidas na mensagem, uma delas recomendava jamais fazer aquela perguntinha tão conhecida e desagradável – quem gostaria (?) – ao atender telefonemas e antes de dizer se a pessoa está ou não disponível para atender à ligação.
Concordo; perguntinha grosseira e irritante, mas depois de passar por algumas situações mudei de atitude sem rever qualquer conceito sobre boas maneiras.
Situações que levam qualquer pessoa a considerar a possibilidade de jogar o telefone pela janela ou pisoteá-lo até reduzir o pobre aparelho a um amontoado de cacos e acabar no prejuízo, além de enfrentar a expressão temerosa estampada no rosto da secretária ou de quem atendeu a ligação e perceber que ela está cogitando pedir reforços ou mesmo uma camisa de força.
Não, não é exagero e explico.
Há dias em que o trabalho parece impossível de ser concluído, que o objeto de sua pesquisa parece ter sido tirado de circulação por algum duende ou por uma conspiração para o seu insucesso. Bom, afinal todo mundo tem direito a certo grau de neurose em determinadas circunstâncias.
Trabalhando, pesquisando, concentração total e finalmente o texto fluindo, aquele relatório chato está sendo finalizado e vem a interrupção para atender uma ligação de uma pessoa cujo nome é, definitivamente, desconhecido.
Seguindo as regras da boa educação já interrompi o que estava fazendo e atendi ligações em que a pessoa disparava um amontoado de informações, sem dar uma chancezinha de interrupção.
Terminada a ladainha o ataque já parte para pedidos de contribuições para todos os tipos de necessitados e entidades. Muitas, senão a maioria dessas entidades atende à necessidade de mansões, viagens e outras coisinhas do gênero.
Não, não sou a mais desalmada e insensível das criaturas e ajudo sim, o próximo como posso. E quando digo próximo estou falando também daqueles que precisam e estão perto de mim.
Voltando às ligações, em algumas oportunidades, caso tivesse seguido as instruções, já seria proprietária de quatro carros maravilhosos por ter sido sorteada por uma emissora de televisão e isso sem nunca ter participado de qualquer concurso!
Como sou teimosa e não segui as orientações de ligar para um determinado número, fiquei sem os carros e, muito provavelmente escapei de desencadear algo em algum sistema prisional de segurança máxima.
Mas a minha “sorte” vai ainda mais longe; já fui também premiada com cursos “totalmente gratuitos” de informática, de Inglês, Espanhol e outros tantos impossíveis de enumerar aqui. Com certeza seria hoje uma exímia e poliglota conhecedora de informática, caso tivesse concordado em pagar “apenas” o material, as apostilas.
Nesse ponto, aquela engenhoca chamada telefone já é olhada como “o inimigo” e as pessoas que tentam transformar você numa abominável criatura insensível ou que joga a sorte pela janela não fazem a menor idéia da imensa sorte que têm por não estarem bem ali na sua frente.
São, realmente, pessoas de sorte. De sorte e incansáveis.
Já em casa, ao final do dia que, afinal foi normal considerando a normalidade de uma maratona, acomodada naquela poltrona ou naquele sofá, nas mãos o material que há tempos esperava e que estava louca para ler ou pronta para assistir ao filme que havia reservado.
O tão esperado e abençoado silêncio do telefone, que em outros dias parece que cala para torturar é quebrado como o som de uma gralha no cérebro.
Impossível evitar aquele sorrisinho cínico e maquiavélico enquanto observo a pessoa que atendeu perguntar:
- Quem gostaria?

segunda-feira, 8 de março de 2010

Um Dia Quase Normal

Hoje foi um dia quase normal.
Acredito que tenha sido um dia quase normal para quase todas as mulheres.
Quase normal porque, com ou sem restrições ao caráter comercial da data, temos que encarar o fato: é o “Dia Internacional da Mulher”.
Quase todas as mulheres porque não nos esquecemos das barbáries, mutilações, mortes por apedrejamento de seres humanos que ousaram nascer no feminino e, pior, optaram por viver o feminino.
Quase, porque não é sempre e, muito menos todos os dias que recebemos “parabéns” do porteiro, do caixa da padaria, do atendente do banco, do rapaz do cartório, do segurança da escola e a lista vai longe.
Também não é sempre que nossa caixa de correspondência fica tão cheia de lindos cartões – com a devida propaganda, é claro – de lojas, prestadoras de serviços, empresas de telefonia e, a lista, aqui também, vai longe.
Também não é sempre que recebemos uma rosa no posto de gasolina, um brinde especial na farmácia, sorrisos e gentilezas especiais de pessoas com quem temos contato quase diário.
E isso é bom, ou melhor, é muito bom. Não, é mais, é ótimo.
É ótimo receber atenção, gentileza, sorrisos; a sensação é maravilhosa e fica melhor ainda quando retribuímos ou simplesmente agradecemos com um mais simples ainda, porém mais autêntico sorriso.
O mesmo sorriso com que todos os dias cumprimentamos, agradecemos, nos relacionamos, enfim, com as pessoas, com o mundo.
Não, nossa vida não é perfeita, nosso humor nem sempre é bom, as coisas não são sempre como gostaríamos que fossem e lutamos muito para chegar onde estamos agora. Mas chegamos.
Então, se nesse momento, pouco podemos fazer por aquela parcela de mulheres que não podem viver em paz sua feminilidade, sejamos, plena e descaradamente, mulheres todos os dias.
Inclusive hoje.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Aprendizado

Acredito que para quem chega ao mundo sem receber instruções, sem manual, mapa, fórmula ou lâmpada mágica, até que nos saímos bem.

Aos poucos, talvez por instinto e seguindo uma lógica própria, que de lógico nada tem, vamos elaborando nossa fórmula.

Num traçado intuitivo fazemos o mapa e, a lâmpada mágica ficamos a esperar, pois já disseram que não se pode ter tudo.

Será que não? Em alguns momentos tenho minhas dúvidas; mas só em alguns momentos.

O manual vai sendo redigido intuitivamente e com a ajuda de uma dose de bom senso.

Para isso pesamos nossos sonhos, ambições, conquistas e valores. E esses, os valores, com alguma habilidade, minimizamos e conseguimos até neutralizar a insistência daqueles que tentam violá-los.

Desenvolvemos também habilidade para saber argumentar quando da nossa boca está pronto para sair um palavrão; calar quando muitas vezes queremos gritar e lutar. Conseguimos até um autocontrole que não nos imaginávamos capazes.

E, mesmo otimistas na maior parte do tempo, às vezes, quando nos gritam verdades que não são nossas e nas quais não acreditamos, desanimamos.

E piora, pois quando ignoramos essas verdades gritadas, o silêncio alheio não hesita e nos atinge com a rejeição, deslealdade, indiferença. E dói. Dói com uma intensidade que acreditamos não suportar.

Então, resta-nos o refúgio do nosso próprio silêncio abafando vozes que não queremos e não merecem ser ouvidas.

E, em meio à mágoa e à dor, passamos a delirar com um mundo onde fosse possível ir até a farmácia da esquina e comprar autoestima em embalagens de 50 ou 100 miligramas.

Chegamos até a ouvir a voz do vendedor oferecendo uma caixa com vinte comprimidos de amor próprio com desconto para pagamento à vista.

Concordo, não é sonho, mas delírio.

Então, descobrimos também, que o paraíso não está logo ali, mas se estivesse não acredito que seria para lá padecer.

Mas, bendito “mas”, aos poucos, vencemos, pois percebemos que dói até o momento em que, distraídos da dor, passamos a ver além do silêncio.

Vemos que gritos e silêncio arrogante são argumentos dos ignorantes, que espezinham valores alheios pela divergência que fazem aos seus interesses.

São confrontos inúteis, situações que não nos trazem nada além do desgaste, rugas e cabelos brancos. Então damos as costas e fugimos.

Simples assim; fugimos do que não merece o nosso tempo que, convenhamos, é precioso. Como nossos valores.

terça-feira, 2 de março de 2010

Ela Queria Um Conto de Fadas

Ela queria um conto de fadas, mas nenhuma apareceu e da vida ganhou uma história que nem sabe se um conto daria.
Uma vida ansiosa por fazer escolhas certas, ser a pessoa certa cegou-a por muito tempo, impedindo que visse os sinais cada dia mais evidentes do fim que se aproximava.
Há muito não se sentia em casa naquele lugar, sabia que ali nunca mais seria seu lar. Dava-se conta que, por muito tempo, sua única certeza era o desejo de estar longe dali, estar só.
Ansiava por isso agora, para poder pensar sem ser observada, cada mínima reação analisada, como uma cobaia de um novo experimento.
Ela compreendia que seu silêncio, seu equilíbrio, aparente ou não, assustava-as mais ainda. Elas estavam ali porque temiam uma crise de choro, de histeria, caso ela ficasse sozinha.
Com esse pensamento foi tomada por uma vontade insana de rir, rir até chorar, finalmente, não pela dor, mas como uma conseqüência do riso.
Riso ao imaginar o que aconteceria se pudessem escutar seus pensamentos naquele exato momento. Conseguiu imaginar, como se já estivesse acontecendo, os olhares furtivos, sinais mal dissimulados, que traduziam a aflição, o não saber o que dizer
Uma onda de gratidão e afeto atingiu-a ao perceber o quanto estava sendo difícil para as duas amigas, mas não conseguia evitar. Não queria falar, chorar. Sentia-se estranhamente calma diante do estranho vazio em seu peito.
Agora tomava consciência de que sabia que a distância havia chegado há muito tempo levando-os para a solidão que, até aquele momento, parecia eterna.
Até o instante do desfecho triste e silencioso, mais triste pelo pesado silêncio do que pela partida; o que surgira como insuportável sofrimento era, na verdade, a libertação.
Não mais olhar nos olhos de quem há muito estava distante; não mais responder a perguntas que sequer queria ouvir e, finalmente, poder olhar os próprios olhos e reconhecer-se, finalmente reencontrar-se.
Lembrava com estranheza, agora, sua certeza até horas atrás de que não haveria consolo, terra firme, porto seguro quando o sofrimento e a dor tomariam conta de cada mínima partícula de seu corpo, de cada pedaço de seu mundo, daquilo que um dia fora sua vida.
Ficara aterrorizada pelo fantasma da dor e agora a sua ausência era tão natural quanto bem vinda.
Olhou finalmente para as amigas pensando numa maneira de explicar. Poderia começar dizendo que não teve o conto de fadas que sempre quis, mas, também não teve a bruxa que, na maioria deles, também existe.
Que estava quase feliz, pois se não teve o conto de fadas também não foi obrigada a encarar a bruxa e não corria mais o risco de que a amargura a transformasse em uma.
Elas entenderiam, disso tinha certeza.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Vida, Ritmo e Compasso.

Acorda e, mal abre os olhos, é atingida sem chance de fuga, de refúgio. Ela sabe, ele sempre estivera ali, à espreita, aguardando o momento em que ela teria que encará-lo.
Quem disse que os sentimentos não sabem ser traiçoeiros? Ou quem disse exatamente o contrário, que justamente por ser sentimento conseguia sê-lo – traiçoeiro - com especial habilidade?
O sentimento reconhecido, aquela inquietação tão familiar quanto antiga.
Agora tomava conta da sua alma, do seu corpo afastando-a de tudo à sua volta.
Essa inquietação, teimosa, insistente agora não aceitava mais a ignorância. Tantos anos fingindo não notar a presença que, se notada exigiria um gesto, uma palavra, uma atitude.
Tantos anos dando voltas no relógio, pisando as horas, atenta tão somente ao ruído dos seus passos, policiando seus pensamentos e, conseguindo assim fugir da inquietação, da ânsia pelo novo, por uma vida que ela sabia existir, mas não ousava pretendê-la.
Mas a alma alcança lugares que nem a mais brilhante das mentes sonha existir. E ela queria mudar a paisagem da sua janela.
Não gostava de mentir; temia a dificuldade em reconhecer o limite e, ainda pior, se o ultrapassava.
E agora era inevitável; não podia mais ignorar que a tristeza negava-lhe o bom humor; o fracasso negava-lhe a esperança e a covardia trazia-lhe o desamor.
Até nisso era contida, pois, afinal o que é o desamor senão tão somente a ausência do amor? Desamor não é ódio; indiferença, talvez. Não, era apenas a ausência de outro sentimento.
Tudo isso ela pensou ainda sentada na cama. Olhou para o relógio com a certeza que estivera ali, fitando o vazio por horas.
Constatou que foram minutos.
Muito tempo quando o ambiente perde o equilíbrio, quando pensamentos, sentimentos e matéria não acompanham o mesmo ritmo e ficam irremediavelmente em descompasso.
Levantou-se sem fazer ruído, arrumou-se e ganhou a rua consciente de que agora dependia dela colocar tudo de volta ao mesmo ritmo e, finalmente, definir ela própria o compasso de sua vida.


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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Afinal, Você Merece!

Você pode passar a vida dando satisfações, explicando o óbvio, repetindo e repetindo seus motivos.
Com sorte e se estiver atenta percebe que isso acontece sempre com as mesmas pessoas. Aí você desanima, cansa, e se sente literalmente exaurida.
Mas, ainda com mais sorte e mais atenta, um dia você finalmente percebe que quanto mais satisfações você der, mais será cobrada; quanto mais explicar o óbvio menos será entendida e seus motivos, convenhamos, são seus.
É então que você se dá conta de que faz tudo isso a quem não importa realmente. Ou melhor, a quem na verdade não “se” importa e cobra por cobrar; contesta por hábito e, na verdade, não está nem aí com o resultado final.
Se a ficha caiu, ponto para você!
Mas você ganha mesmo, e de lavada quando percebe que:
Quem realmente importa não pede satisfações, enxerga a atitude;
Não espera explicações, a compreensão está no olhar, e, mesmo que seja dada, não será explicação, mas abrir a alma;
Comungar a vida;
Repartir o que parecia indivisível;
Dar o que nem sonhava ter;
Receber o que parecia inalcançável;
Ser abençoada sem ver o gesto;
Mas, se não for assim, levante, dê um sorriso e caia fora.
Afinal, você merece.

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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Mulheres Interessantes

Que atire a primeira pedra aquela que nunca, nem uma vez sequer, tenha procurado um defeito, qualquer coisinha mínima nessas mulheres lindíssimas com quem a mídia nos afronta diariamente.
Acredito que o risco de encarar uma multidão feminina munida e pronta para o ataque não seja muito grande, mas tiro meu chapéu para as que começarem o apedrejamento.
Da minha parte, esclareço que nunca fiquei procurando imagens dessas deusas para então, numa versão um tanto desvairada de Sherlock Holmes feminina, com uma lupa, achar as falhas.
Mas, devo confessar que algumas vezes, principalmente durante a adolescência me deparei com elas em fotos – os deuses não foram cruéis a ponto de me colocarem ao vivo diante delas – olhei atentamente em busca de uma falha mínima. Uma falta de pigmentação na sola do pé que fosse! Nada.
Como tudo nesse mundo, a adolescência passa, você acaba se conformando com o número de buscas frustradas e, afinal, tem que cuidar de sua vida.
Já adulta você gosta do que vê quando olha no espelho e percebe que outras pessoas gostam do que vêem quando olham para você. Sem exageros, mas uma visão realmente agradável.
Algumas vezes sai de casa com jeans, camiseta e sem maquiagem – como tantas mulheres divinas declaram em entrevistas – consciente que assim mesmo atrai alguns olhares, não de susto, mas de interesse.
Sim, mas para chegar até aí você já trilhou um longo caminho e descobriu que não há um padrão rigoroso para o belo e que este, sozinho no ser humano acaba sendo pouco.
E mais; descobre o prazer e a satisfação de ser uma mulher interessantemente ...bela.
E já que se trata de beleza, um belo dia, você está na sala de espera do médico, dentista ou mesmo em casa folheando uma revista e dá de cara com uma declaração da Sharon Stone assumindo suas celulites; Gisele Bündchen afirmando que não se considera bonita e que bonita mesmo é a Carolina Dieckmann; que, quando adolescente, Glória Pires foi considerada por Daniel Filho sem futuro na televisão por não ser bela.
Não contendo o riso pensa: onde estavam essas declarações quando eu tanto precisei delas? Mas será que precisava tanto mesmo?

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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Conversa no Aeroporto

Há algum tempo tive a oportunidade de conversar com um senhor de quase oitenta anos. Estávamos no aeroporto de Curitiba aguardando a chamada para embarque. Confesso que estava tão cansada e ansiosa para voltar para casa, que só notei sua presença quando falou:
- Impressionante a capacidade que o ser humano tem de inverter tudo – Como que em resposta ao meu olhar um tanto surpreso, continuou:
- Usa e trata como descartável o que é para ser amado e cuidado e valoriza e se apega ao que foi feito para ser simplesmente usado e pode ser trocado. - Ainda tomada pela surpresa, sorri para ele sem nada falar. Acredito que animado pelo meu sorriso, o simpático senhor, ajeitando-se na poltrona, continuou:
- Você pode usar um carro até que ele fique velho ou, se tiver sorte e puder, até que apareça um modelo mais novo.
- Você pode usar um computador até que outro com mais recursos apareça no mercado e esteja dentro de suas possibilidades - esse é trocado com uma rapidez assustadora!
- Você pode usar um batom que deixe-a especialmente mais bela, até conseguir tirar um último resquício de cor e, então, joga fora.
- Você pode usar aquele creme caríssimo que promete milagres até não conseguir mais tirar nem um mínimo sinal de dentro do frasco e, então, você joga fora.
- Tem até algumas coisas que você resiste em jogar fora: aquela camisola ou camiseta que de tão usada é uma delícia para dormir; sozinha, por favor! – Nesse ponto não consegui disfarçar minha surpresa e menos ainda meu sorriso mais amplo enquanto analisava o falante e singular senhor vestido com um terno, colete, gravata e tinha nas mãos uma bengala.
- Aquela cueca, que, de tão velha já está meio transparente, mas tão confortável pode ser usada sempre que ele não estiver com “ela”, é claro! – A cada palavra daquele senhor minha surpresa aumentava.
- Pensando bem ela pode até ficar sexy naquela camisola ou camiseta já velhinha e ele naquela cueca que, afinal, por estar tão gasta, mostra mais seu corpo.
Nesse ponto ele olhou-me atentamente e disse:
- Ora, não me olhe com essa cara de assustada. Eu não nasci com oitenta anos, mocinha! – falou com um enorme sorriso. Sorri de volta para ele e antes que começasse a tentar justificar meu espanto ele continuou:
- Mas, há coisas que não ficam obsoletas e que não podem ser simplesmente trocadas;
- Um amor verdadeiro; a relação pode acabar, mas o amor estará sempre lá, naquele momento em que alguém amou e igual a ele não haverá outro.
- Uma amizade; você pode ter várias, mas uma jamais será igual à outra e nem todas serão verdadeiras.
- Respeito; você vai sentir falta se não demonstrarem por você.
- Carregue sempre isso com você, pois tudo mais passa. O que não vai passar é a falta que você vai sentir dessas três coisas se não existirem em sua vida.
Falando isso levantou-se e segurando minhas mãos desejou:
- Que a sua viagem seja tranqüila agora e repleta de Amores a sua jornada de vida.
Até hoje me pergunto se aquele senhor tão especial existiu ou se é parte de um sonho num cochilo descuidado. Mas, nunca esqueci seus conselhos.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Sapato Velho

Em mais de vinte anos Manuela pouco mudou. É esse tipo de pessoa que o tempo poupa de algumas marcas. Atenção, eu friso, algumas.
Ela sempre foi destituída de atributos físicos, os traços não eram harmoniosos não levando em consideração, aqui, padrões de beleza.
Quem a conhecia, logo nos primeiros minutos chegava à conclusão de que não era bela, mas tinha gentileza e educação extremas e raras.
Fazia amizades com uma facilidade extraordinária e por onde ela passasse logo se ouvia; “Como é boazinha!”
Distribuía carinho, consolo, ajuda material ou não, a quem precisasse, sempre com a voz doce, um carinho, um afago. Era maternal com todos independente de idade ou sexo.
Orgulhava-se das inúmeras amizades que ia angariando vida afora e sorria satisfeita quando ouvia o quanto era “boazinha.”
Apaixonou-se perdidamente incontáveis vezes; sempre por grandes amigos e confidentes, alguns de beleza ímpar, muitos com relacionamentos estáveis e outros tantos companheiros de suas melhores amigas. Portanto, buscou sempre amores impossíveis.
Muitos deles sequer imaginavam o sentimento que ela nutria. Até o momento em que ela lhes contava e, aí, estabeleciam-se duas situações dramáticas: o amor e a certeza de não ser correspondida.
Era notório o fato de que ela buscava sempre o “impossível”, pois sendo desde o início impossível, ela não correria riscos.
Não haveria risco de ser rejeitada, pois não dera certo por inúmeros impedimentos e não por não ser correspondida. Por outro lado, desapareciam, também, os riscos que uma relação íntima envolve.
E por tudo isso ela passava sendo sempre “tão boazinha”.
Todos que a conheciam sabiam que ela gostava e considerava “sua” a música “Sapato Velho”, cantada por “Roupa Nova” e composta por Cláudio Nucci e Paulinho Tapajós.
Tânia, uma amiga a quem fazia confidências chamava sua atenção, com insistência, para essa auto-sabotagem que ela usava como recurso para proteger-se de amores não correspondidos, relacionamentos que poderiam acabar, sofrimentos, sim, mas também Vida!
Ela negava e recusava-se sequer a cogitar tal idéia, mas agradecia à amiga dizendo que “quem tivesse uma amiga assim não precisaria nunca de analista”.
E seguia a vida, tendo como tema a mesma música e sendo “boazinha” tanto com os amigos quanto com os amores que, muitas vezes, eram os mesmos.
Um dia Tânia foi à casa dela para entregar seu convite de casamento. Ao ser atendida pela empregada, subiu direto ao quarto onde sempre conversavam.
A porta estava aberta e lá estava Manuela sozinha, falando baixo como que praguejando mesmo e raivosamente rasgando fotografias. Em cima da cama, uma foto ampliada do noivo de Tânia, tirada no último churrasco.
Percebendo com um susto a presença da amiga, Manuela, explicou nervosamente que estava livrando-se de recordações de amores antigos.
Falava enquanto colocava os pedaços rasgados em um saco de lixo, mas sem a rapidez suficiente para impedir que a amiga visse seu próprio rosto estampado em um dos pedaços.
Ainda tentando sorrir de forma “boazinha”, acompanhou o olhar de Tânia para a foto ampliada em cima da cama.
Os versos martelavam a cabeça de Tânia: “Você lembra, lembra!/ Daquele tempo/ Eu tinha estrelas nos olhos...”Nesse momento Tânia enxergou as marcas invisíveis que o tempo deixara em Manuela; enxergou o rancor, a amargura, a ira e o desamor. Havia tudo lá, menos a bondade.
Enquanto olhava a cena a música passava insistente pela sua cabeça: “Prá poder buscar/ Flores-de-maio azuis/ E os seus cabelos enfeitar...”
Em pouco tempo Tânia começou a notar que alguns amigos comuns estavam afastados dela; outros passaram a evitá-la e Manuela continuava extremamente “boazinha” quando encontravam-se por acaso.
Tânia até tentou conversar com amigos mais próximos, desistindo ao perceber que não era “boazinha” o suficiente para combater o veneno já disseminado. Essa constatação, aparentemente em total insensatez, deu-lhe um alívio imenso.
Com o tempo, perderam o contato e hoje Tânia tem, ainda, “estrelas nos olhos”, mas escapa rápido quando conhece uma pessoa muito “boazinha”.
Frequentemente se pega pensando por quanto tempo uma pessoa consegue permanecer, ilesa, à espera, como um sapato velho...

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Como Poderia Ter Sido “Se

Sabe, na sua ausência, adquiri estranhos hábitos e aprendi coisas exóticas como, por exemplo, rir de mim mesma, das pequenas besteiras e até do meu jeito desajeitado.
Hoje, xingo sem pudor quando bato o joelho na poltrona que insisto em deixar no mesmo lugar. Não precisa fazer essa cara de horror, pois o máximo que falo é um “merda” e, sabe que ajuda a aliviar a dor?
Certo, repito o palavrão quando vejo a mancha roxa que ficou, confesso, mas dessa vez é quase um sussurro, pois a dor já nem é mais sentida.
Agora corro como uma maratonista à procura do “sem fio” quando toca o telefone, sem receio de ser criticada, permitindo-me a estranha mania de não atender em outro aparelho.
Você não entende isso, eu bem sei, mas as manias são manias justamente porque não prescindem, necessariamente, de explicação.
Ah, sim, a poltrona voltou ao lugar em que eu sempre quis que ficasse, pois no outro, aquele em que você colocou perdeu sua graça e ficava quase escondida. Prefiro continuar vulnerável às manchas roxas.
Cultivo, agora livremente, o hábito de olhar CD’s nas tardes de sábado, mas agora, compro aqueles que quero. Sabe, confesso que, na primeira vez em que fiz isso sem você, estranhei a ausência de alguém tentando convencer-me a levar outros, diferentes dos que eu tinha escolhido.
Ainda estranho, também, não ouvir alguém dizer que não entende porque eu gosto de determinadas músicas sem conseguir expressar um argumento válido ou defeito dos meus Chicos, Caetanos, Djavans, Toquinhos, Vinicius, Ritas, Marisas, Elis e...bom, listar todos seria um desafio ao qual me nego.
Penso que, de resto, pouca coisa mudou; ouço e retribuo as simpáticas brincadeiras do porteiro da manhã, conheço, agora pessoalmente, o do turno da noite, troco lâmpadas queimadas, tenho uma caixa de ferramentas, leio o jornal onde e quando quero e, às vezes, penso em como poderia ter sido “se”. Como acabei de fazer agora.

A Vida Pode Ser Maravilhosa...?

Tenho certo cuidado com esses rompantes de “passar a vida a limpo”, fazer um “balanço geral”, “listar perdas e ganhos”. Por covardia, assumo, pois não sei se quero encarar o resultado.
O que eu sei é que quando as coisas ficam complicadas passamos a listar os problemas priorizando a necessidade e aí vem a saudade do tempo em que a lista era feita priorizando desejos.
A etapa seguinte é a lista das coisas que desejamos possuir novamente, feita de acordo com a intensidade da falta que sentimos de cada uma que já tivemos e perdemos.
Bom, até aqui a vida ainda está razoável, pois ainda conseguimos fazer listas o que significa que nem tudo está perdido ou ainda conseguimos enxergar a famosa luz, mesmo que seja uma pequena claridade, no fim do túnel.
A luz desaparece, a coisa fica preta, a ficha cai e todos os alarmes são acionados quando:
O orçamento grita em agonia antes da metade do mês;
Adquirimos o estranho hábito de velar insones o sono dos filhos que dependem de nós;
Conseguimos ficar sentados em frente à TV, como zumbis, olhando sem ver aquele insuportável programa de auditório;
Não fazemos nem cara feia ao saber que o parente “mala” e fofoqueiro vem nos visitar.
Nesse ponto vem a saudade da época em que a dor que sentíamos era por um amor não correspondido ou que se foi e nos damos conta de que sequer lembramos mais o que é tristeza por um amor perdido ou o frisson que um beijo pode causar.
Queremos sentir de novo como é ser filha, mas o pai não está mais logo ali adiante e a mãe, nessas inversões loucas da vida ou de Deus, virou filha de novo.
Queremos ouvir de novo o som da nossa própria risada, que já nem lembramos como é.
Queremos, enfim, encontrar um jeito de achar que a vida pode ser maravilhosa.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

É só um pão!

Sexta-feira, final de tarde, cansada depois de um dia de trabalho um pouco difícil, chego em casa, jogo-me no sofá já tirando os sapatos, quando lembro que havia esquecido de comprar pão.
Respirei fundo, lembrei de tudo que estou lendo sobre a importância de emanar boas energias, não superestimar pequenas contrariedades, ter sempre pensamentos positivos e, colocando em prática, argumentei comigo mesma que afinal eu tinha que caminhar apenas três quadras até a padaria.
Coloquei os sapatos e lá fui exalando bons fluidos, lindas energias e quase conseguindo ver minha aura belíssima.
O elevador demorou um pouco e quando parou no meu andar estava lotado, o que não é comum. Quando digo “lotado” não estou apenas usando a expressão empregada usualmente; digo “lotado” no sentido literal da palavra.
Como obviamente não entraria no elevador, sorrio, até por uma questão de cordialidade para as pessoas que estão no elevador e enquanto a porta se fecha noto que nenhuma delas retribuiu a minha simpatia. Bom, penso eu, é compreensível.
Como são dois elevadores “sociais” fico aguardando que o outro pare no meu andar.
Nesse momento, a mulher do síndico – sim, eu moro em frente ao apartamento dele – aparece e avisa que o outro estava “em manutenção”. Por uma questão de justiça devo dizer que o síndico do meu prédio é uma pessoa extremamente simpática e excelente administrador.
Vou pelo “de serviço”, disse eu, sorrindo agradecida pela informação. Ela sorriu de volta, mas pareceu aquele tipo de sorriso “amarelo”. Enquanto pensava sobre isso o elevador chegou e ela apressou-se em abrir a porta. A visão que tive esclareceu minhas dúvidas sobre aquele sorriso.
Havia um carrinho, desses em que se carrega compras de mercado, cheio. Havia também sacolas ocupando o espaço em torno do carrinho e outras, sobrepostas a elas.
A mulher olhou-me e sua expressão variava do desespero a um pedido de desculpas de quem nem sabe ao certo que culpa tem.
Sorrindo e tentando dar ao sorriso um significado do tipo “ah, isso não é nada”, mas não muito confiante do meu sucesso, comecei a ajudá-la na empreitada de retirar todos aqueles volumes de dentro do elevador.
Após uma breve análise do “arranjo” de sacolas, começamos pelas que estavam por cima da pilha.
Confesso que senti um certo desespero, como uma leve vontade de bater a cabeça na parede ou arrancar umas mechas de cabelo quando, ao retirar as primeiras, percebi que havia um número muito maior de sacolas do que eu imaginara, espremidas em cada mínimo espaço daquele elevador.
Sem parar para pensar – a idéia de bater a cabeça estava ficando mais insistente – comecei a colocar as sacolas no chão. Revendo a cena mentalmente, creio que ataquei as sacolas como uma arqueóloga louca que resolvesse fazer a escavação da tumba de um faraó de nome impronunciável com as próprias mãos.
Em algum momento do “tira sacola do elevador/coloca sacola no chão” notei que só eu estava pegando as sacolas e, as que eram retiradas não estavam acumulando-se no corredor.
Percebi, então, que a mulher, numa decisão unilateral, pegava as sacolas e levava direto para seu apartamento. Confesso que cogitei avançar sobre ela e nocauteá-la com o maço de aipo em uma das mãos e o amaciante na outra, mas ponderei que seria melhor liberar o elevador.
Quando tirei a última caixa de leite longa vida, estava descabelada, suada, a blusa manchada por um líquido rosa que, pelo cheiro, parecia ser iogurte de morango.
Encostada na parede ainda ofegante pelo esforço ouço o familiar barulho do elevador social chegando. A porta se abre e sai o síndico e Dona Nena, moradora do 12º andar.
O síndico olhava para mim de forma estranha, desde os cabelos desgrenhados até os sapatos enfeitados por uma gota rosa, do mesmo tom da mancha na minha blusa.
Meu bem, disse-me Dona Nena, olha só o que eu trouxe para você. E mostrando um enorme pão feito por ela mesma completou: “você trabalha tanto e está tão magrinha!”
Eu comecei a chorar e, não como choram nos filmes, naquelas cenas lindas, lágrimas escorrendo pelas faces. Não, eu soluçava alto enquanto me jogava nos braços de Dona Nena que, me embalando dizia:
“Mas é só um pão!”

O Que Irrita Fernanda ou Como Sobreviver ao Domingo

Domingo foi um daqueles dias que se arrastaram melancólicos em que todos os sentimentos indesejados ganham uma proporção gigantesca.
Angústia, saudade, tristeza decepção viram monstros com as bocarras abertas prestes a nos engolir.
Num domingo assim, a tristeza pelo pé na bunda que pensávamos estar superado volta com força total, a frustração pela falta de reconhecimento por um trabalho bem feito é lembrada a todo instante, a rispidez do filho distante ao telefone faz com que pensemos até em morte – extremismo, eu sei, e passa logo. A idéia de morte não a mágoa.
E assim foi o domingo. O dia passou e não sei o que irrita Fernanda ou com quem conversou Marília.
Tampouco os filmes, os “longas”, prenderam minha atenção, então tentei as séries com seus tribunais, investigações e relações delicadas. Mas enquanto as imagens passavam diante dos meus olhos, na minha mente passava a vida.
Conversei comigo mesma e, confesso, o papo não foi dos melhores. Já estive em melhor companhia.
Atravessei o dia ansiando pelo seu fim, pelo anoitecer. Veio a noite, mas o sono perdeu-se pelo caminho; mais pensamentos sombrios na noite insone.
Mas, como drama não é meu gênero e, embora tenha meus ataques, tanto de choro quanto de riso e, mesmo não chegando à comédia, escolho a leveza
Veio o dia. Olho pela janela e, depois de pedir desculpas a Deus pelas palavras e pensamentos um tanto grosseiros, como uma Poliana meio passada, na idade e pelo cansaço da noite mal dormida penso: “Venci um domingo; não será uma segunda a me derrubar”.
E continuo sem saber o que tanto irrita Fernanda...

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sábado, 30 de janeiro de 2010

Mais Louco é Quem Me Diz

Diferente da maioria das pessoas que conhece, ela não gosta de ouvir música quando está triste. As músicas em dias de tristeza são como mãos tocando um machucado sem qualquer cuidado.
Sentada na sala olha para seus discos; os de vinil, tão especiais a ela parecem desafiá-la: “ e aí, não vai encarar?” E ela, que ama música encolhe-se no canto do sofá lembrando a noite insone e suas reflexões sobre o tempo.
Nove anos; há nove anos começaram suas perdas e o luto em seu peito parece, às vezes, que sempre esteve com ela.
Quer acreditar na existência de um ciclo de número cabalístico ou qualquer outro adjetivo mais adequado, que indique o encerramento; pronto, o tempo das perdas, da desesperança acabou.
Sim, pois será verdadeiro por inteiro o ditado tantas vezes repetido “não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe?” Por inteiro, porque metade dele ela sabe ser verdadeiro; o bem acaba e em sua aflição ela olha o tempo, olha a vida e tem medo de não haver tempo para o bem voltar.
Olha seus discos novamente e eles parecem rir de sua covardia.
Nove anos é muito pouco para uma vida, mas é uma eternidade, por exemplo, para a namorada que anseia pelo casamento, reflete ela. Da mesma forma que um segundo é mínimo para uma carícia, mas imenso para uma dor de dente.
E não é só o tempo; uma gota não satisfaz ao sedento, mas pode fazer transbordar uma vida contida.
Deixa em paz meu coração...” as músicas continuam seu desafio, mudo, na sala, mas em volume máximo na sua cabeça.
Não, pensa ela, mesmo “amandoChico Buarque, não será essa a minha música tema. Parte para os discos escolhe um e acompanha o cantor, soltando a voz para o mundo; “...mais louco é quem me diz que não é feliz...”

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Pessoas Que Não Quero Encontrar

Existem pessoas que são fagulhas; não compartilham, porque não sabem ou porque nada possuem para repartir. São como aqueles palitos de fósforo que ao serem riscados soltam pequenas faíscas que, em milésimo de segundo se apagam.
Nunca serão chama, labareda, fogo, mas acomodam-se e usam o brilho e o calor de outras que, sem medo de ousar, iluminam, aquecem e fazem de cada momento um espetáculo, uma aventura, uma história de vida.
E, assim, durante nossa jornada encontramos pessoas que passam a vida sendo gotas, jamais jorro d’água.
Pessoas que passam a vida como brasa esperando o sopro que poderia acendê-las.
Tristemente áridas, estéreis, passivas.
Mas, também, inescrupulosamente enganadoras e, na primeira oportunidade tentam destruir o seu oposto, a prova, o espelho que pelo inverso reflete seu imenso fracasso.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sem Nada Para Contar

Ela olhava fixamente para a folha de papel em branco à sua frente enquanto girava a caneta “Bic” entre os dedos. Mais um fracasso para a sua coleção. Se fossem colocados em estantes, como se costuma fazer com troféus, faltaria prateleiras e espaço para elas onde morava.
Segundo as instruções da moça bem vestida cujo olhar, ela imaginava, fosse sempre de superioridade, ela deveria escrever naquela folha um resumo de sua vida. A etapa seguinte seria a entrevista, caso fosse chamada, para depois saber se, finalmente, conseguira a vaga de secretária na empresa.
Escrever não era um problema, pois sempre tirara notas boas em redação. Mas, escrever sobre sua vida era uma piada e ser esse o teste era a maior falta de sorte, afinal não havia nada a contar sobre sua vida!
Como é que alguém conseguiria escrever sobre “nada”? Sim, pois sua vida era um imenso “nada”. Não havia realizado nada de importante que merecesse ser escrito naquela folha; nunca havia tido destaque, na escola ou fora dela.
Seu pai tinha sido um homem rico que perdera toda a fortuna quando ela tinha cinco anos. Portanto, da riqueza quase nada lembrava, mantendo vívida apenas a lembrança do suicídio do pai.
Com a morte do pai ela e a mãe passaram a viver “de favor” na casa de um tio. Em troca do favor a mãe executava os serviços domésticos, ajudada por ela no que sua pouca idade permitia. Como os tios eram muito bondosos, matricularam-na na mesma escola em que a filha estudava.
Aos catorze anos conheceu seu primeiro namorado; apaixonaram-se e, quando ela completou dezoito anos casaram-se. Tiveram três filhos; duas meninas e um menino.
O marido, engenheiro agrônomo tinha uma carreira promissora na empresa em que trabalhava e, aos poucos conseguiram um privilegiado padrão de vida.
Sua mãe, de saúde frágil, havia morrido antes do nascimento de sua primeira filha. Assim, era feliz por ter os três filhos e o marido; formavam uma bela família.
Na semana em que completaria dezoito anos de casamento o marido e as duas filhas morreram num acidente de carro. Restou-lhe, então, somente o filho que, graças a uma febre não havia ido à escola e não se encontrava no carro no momento do acidente.
Agora, com as economias acabando, já perdera a conta de quantos empregos havia tentado, mas todos exigiam experiência, o que lhe faltava.
Mas, de todos os testes este era, realmente, o pior! Escrever sobre sua vida? O que escreveria sobre uma vida tão desinteressante?
Desanimada colocou a caneta em cima da folha em branco, pegou sua bolsa e saiu para a rua pensando que talvez tivesse mais sorte no próximo...

sábado, 23 de janeiro de 2010

Triste Despedida

Ela mentalmente pedia-lhe que a livrasse daquele silêncio mais cruel que qualquer palavra que não nunca antes quisera ouvir.
Não por um sentimento menor que sempre abominou, como ele tão bem sabia, mas sim por ser melhor agora aquela detestável e peculiar gentileza, tão característica dele, que qualquer sinal de pena.
Gentileza contra a qual tantas vezes se rebelara, pois não era outra coisa senão frieza, rigidez. Desejava-a agora, pois mil vezes a gentileza formal que o silêncio de chumbo.
O rosto dele era uma máscara onde ela fixava o olhar na esperança de captar um tremor mesmo que involuntário, um erguer de sobrancelhas, um sinal de humanidade enfim.
Mas nada, a máscara pétrea permanecia; tão conhecida, tantas vezes observada. A máscara da impassividade, da não demonstração de sentimentos, que sempre fora para ele, motivo de orgulho.
Com pesar ela constatou que nada mudara.
Ele permaneceu imóvel, sem emoção, até mesmo naquele último minuto.
A despedida foi triste não pela emoção, mas pela ausência dela, como em tudo mais naquela vida.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Cuida da Mão que Afaga

Cuida, menino, cuida.
Protegê-lo dos horrores seria privá-lo da beleza;
Poupá-lo da ilusão, ainda que vã, seria privá-lo dos seus sonhos;
Impedir seus erros seria privá-lo das opções;

Cuida menino, cuida.
Evitar as desventuras seria privá-lo de provar o sabor do inesperado;
Prevenir as feridas seria privá-lo do direito de ousar;
Pedir que não voe seria privá-lo da Vida;

Cuida, menino, cuida, pois não suportaria vê-lo perecer!
Há necessidade de protegê-lo dos perigos;
Há necessidade de tirar-lhe a miséria do caminho;
Há necessidade de velar seu sono e guardar seus sonhos;
Não peço que leia o triste Augusto, menino, mas cuida da mão que afaga...

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Ausência

Acordar, olhar o sol, admirar o lindo dia e agradecer por tudo seria o certo, o correto, o que todos e tudo nos ensinaram a fazer sempre. Imagino seu olhar triste meu caro amigo, ao saber que hoje eu não queria acordar, mas como não tinha opção, o fiz sem notar o sol, pouco me importei com a beleza (ou não) do dia e suportei o que veio pela frente, ansiando pelo anoitecer.
Como você sabe amigo, as sombras nunca antes me seduziram e sempre quis mais e mais sol.
Tampouco a cama, como refúgio, me atraía, mas sim estar exposta para a vida, o novo, a ânsia pelo que viria.
Até o dia em que o que veio não era bem vindo e tirou-me a vontade, lacerou-me o espírito fazendo com que eu me perdesse de mim, transformando as crenças em dúvidas, as certezas em medos, o riso, mesmo quando suave, em pranto doloroso.
E de tudo ficou um imenso e profundo silêncio.
E, dor maior do que você não estar lá, meu amigo, era a consciência de que nunca mais estaria.
O único capaz de me confortar por tão grande dor, não estava lá, pois estando não haveria necessidade de consolo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Da Minha Janela...

Da minha janela vejo o jovem que se arruma diante do espelho desalinhando os cabelos obedecendo a um modismo invertido, mas não por isso menos belo.
Vejo uma garota lutando com seus cachos, alisando-os e transformando-se numa cópia de tantas outras sem saber que assim fazendo abre mão do seu diferencial, arma mais poderosa e exuberante que aniquilaria as demais.
Viro a cabeça e surge no meu campo de visão a moça que olha ansiosa o relógio, preocupada com o atraso do namorado enquanto analisa o vestido cuidadosamente escolhido para agradá-lo, pois finalmente com esse o namoro será pra valer.
Passeio os olhos e deparo com a mulher aflita, cheirando a roupa tirada pelo marido para depois vasculhar seu celular buscando provas que não quer encontrar.
Constato, então, como é fácil da janela da minha vida observar o outro e ver tão claramente a solução de seus problemas, de suas aflições.
Com que tranqüilidade poderia dizer ao garoto como é belo com cabelos desarrumados ou não;
Dizer à menina dos cachos como são lindos e que use-os em seu favor;
Dizer à moça que espera ansiosa que ela é a essência e não o vestido e, invertidos esses valores, com certeza o que está errado é o namorado;
Dizer à mulher aflita que não corra atrás do que não quer encontrar perdendo momentos preciosos na busca de um sofrimento que talvez nem exista.
Quem dera conseguisse eu olhar para dentro da minha janela e, alertando-me para a vida que passa depressa, com a mesma segurança mostrar-me tantas verdades minhas...

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Ela é espectadora de um mundo, uma vida que, intuitivamente reconhece e sabe que já foi parte atuante. Hoje sequer conhece seu lugar, suas coisas, seus apreços, sua referência.
Não tem, não sabe por onde recomeçar; é como pagar uma pena imposta de luto eterno. E, suprema ironia, nesse estado, paga pelo que lhe foi tirado.
Não confia mais nas lembranças, mesmo nunca tendo sido por elas traída; mas conclui que não lhes cabe culpa pela dor que causam.
Na névoa do sono já não tem certeza se são lembranças ou sonhos que, tantas vezes sonhados calcificaram-se como memória.
Desperta para a luz do dia inclemente e constata: o sono não é mais refúgio.
Pergunta então à vida, qual o sentido afinal; a Vida, olhando-a furtiva e desafiadora responde:
- Se quer mesmo saber, viva!
- Mas viver o que, com quem, para quem?
- Olhe-se no espelho e descubra – responde a Vida já quase a escapar.
- Quando olho no espelho vejo outra a me fitar. Uma desconhecida que me parece, morreu em vida.
- A morte em vida não é morte, mas fuga – responde a Vida.
- Não posso continuar e não sei como recomeçar – responde ela prosseguindo o diálogo insano.
- Ora, ora – responde a Vida entre irritada e divertida – se não pode continuar, volte ao princípio e renasça!

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Finalmente, sobre Boris Casoy.

O comentário no mínimo infeliz feito por Boris Casoy há dias atrás já foi objeto de incontáveis manifestações.
Confesso que vi apenas o deplorável vídeo, melhor dizendo, “áudio”, depois o vídeo com o pedido de desculpas.
Particularmente acredito que cabem desculpas por palavras ditas no calor de uma discussão, por ofensas quando a emoção é exacerbada, quando a razão e a ponderação estão ausentes. Mas não foi isso que se viu.
As palavras ditas, inclusive em tom de piada, expressam uma postura de vida e valores.
Uma triste e deplorável postura diante da vida, diante do Outro que não combina, não corresponde à imagem que fez com que Boris Casoy fosse, por tantos anos, admirado e respeitado, inclusive por garis “do alto de suas vassouras.”
Isso não é uma vergonha; é um ultraje, uma afronta a todos os cidadãos que não estão “no alto de uma bancada de telejornal” criando bordões.
Adequado, agora, o velho e tão conhecido provérbio chinês:
"Há três coisas que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida"

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O Pensador Que Rezava Errado

Eu estava em frente à igreja, olhando a cruz lá no alto, no topo da construção. Distraída só percebi a aproximação do homem quando ele já falava comigo.
- A cruz lá em cima parece tão pequenininha...eu também gosto de parar aqui antes de entrar na igreja e ficar olhando.
Olhei para o homem e sem saber o que dizer apenas sorri. Tinha uma aparência humilde, vestido com roupas simples, aparentando os muitos anos de uso. Observei os cabelos já com vários fios brancos e o rosto com rugas precoces e concluí que embora fosse um estranho não parecia oferecer perigo.
- Desculpe chegar falando assim, mas quando vi a senhora olhando lá pra cima, achei que estava como eu: pensando.
- Não tem problema – respondi sem querer parecer grosseira, mas também, sem vontade de falar.
Ele começou a falar sobre sua vida de maneira tranqüila e foi prendendo minha atenção e aos poucos fui deixando de pensar nos problemas que me absorviam antes da chegada dele.
Falava de si próprio comigo como se fosse a coisa mais natural do mundo:
- Homem simples e de pouco estudo, isso ele era mesmo. Mas pensar ele pensava, e muito! Tinha aprendido muita coisa nessa vida.
Ele e a mulher eram muito religiosos, embora ela fosse mais à igreja, pois ele, muitas vezes, trabalhava aos domingos também.
Freqüentou a escola poucos anos porque desde menino precisava trabalhar para ajudar no sustento da casa. Não tinha diploma, mas não era burro e tinha muito orgulho disso.
Ele trabalhava como pedreiro e a mulher como doméstica e o que ganhavam ia tudo no sustento dos filhos; nunca sobrava e era nisso que estava pensando ultimamente.
Na noite anterior quando começou a rezar, desconfiou que estivesse rezando errado. Pedia a Deus que lhe desse forças para suportar as pauladas da vida; que não faltasse comida para sua família; saúde para poder trabalhar e que nunca lhe faltasse trabalho, tão grande era seu medo do desemprego.
E foi pensando que chegou à conclusão que Deus sempre atendia seus pedidos, pois suportou e enfrentou problemas com o filho mais velho, com o mais novo, com patrão e por aí vai; comida deu sempre na conta, mas sem luxo; saúde sempre teve afinal, uma gripezinha de vez em quando não conta e trabalho nunca faltou. Resultado: Deus dava o que ele pedia e ele estava pedindo errado!Por isso, naquele dia resolveu ir até a igreja rezar e pedir do jeito certo: não ia pedir forças, mas sim menos problemas; que comida tivesse em abundância; que com boa saúde tivesse oportunidade de gozar a vida e que tivesse trabalho, mas que o pagamento fosse justo.
E assim, despediu-se e foi caminhando pela praça enquanto eu, então, pensava sobre as minhas orações.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Aula Incompleta.

Era a filha mais nova, nascida oito anos depois da terceira e pegou a todos de surpresa; a mais velha tinha quinze anos e festejou a notícia; abaixo dela, a de onze anos achou a novidade interessante e a terceira, com sete anos só ficou sabendo quando a mãe chegou em casa com o bebê. Não gostou da novidade e nunca escondeu isso.
No ano de 1.965, a garota tinha sete anos e estudava em colégio de freiras, como suas três irmãs. Não gostava do colégio. Achava sombrio, sério e em todos os lugares tinha um crucifixo. Ela não gostava de olhar para eles; tinha pavor dos pregos, da coroa de espinhos e acha muito triste a história “Dele.”
Logo aprendera que, sempre que se referisse a “Ele”, tinha que ser com letra maiúscula, afinal, tratando-se “Dele”, o pronome virava um substantivo próprio.
Até pensar “Nele” era com maiúsculas, concluiu a garota.
Para seu terror, a freira ensinou também que “Ele” era onipresente e onisciente o que, soube depois, significava que Ele estava em todos os lugares, de tudo sabia e via!
Isso não é justo, pensava a menina sem coragem de falar alto. Afinal, “Ele” a veria cutucar o nariz, tomar banho, fazer xixi, fazer...bom, todas aquelas coisas que ninguém faz na frente dos outros.
Quando tentava falar disso com a mãe ou irmãs, não entendia porque elas apenas riam e passavam a mão na sua cabeça. Resolveu então recorrer ao pai, que era quem mais a compreendia, e, assim que ele chegou de viagem ela correu encontrá-lo como sempre fazia e, na primeira oportunidade expôs o seu dilema.
O pai, tranqüilizando-a ensinou: sempre que fosse fazer “aquelas coisas” era só pedir a “Ele” que fechasse os olhos um pouquinho, só até ela acabar.
Aliviada a menina pensou que bem que as freiras podiam ter ensinado isso também. Afinal, se não admitiam tarefa incompleta não deveriam dar a “aula incompleta” também!
Bom, elas haviam ensinado também que “Ele” conhecia os pecados melhor que o seu autor, mas sempre perdoava desde que houvesse arrependimento sincero e o pecador, de joelhos, pedisse perdão.
Assim, passou a ser comum verem a garota de joelhos dizendo: “Perdão Jesus.”
- Já escovou os dentes?
- Já – ajoelhando-se em seguida.
- Arrumou seu material?
- Sim – joelhos no chão.
- Sabe toda a matéria da prova?
- Sei – ai meu joelho.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Reconstrução

Pisaram minhas flores;
Devassaram minha casa;
Macularam meu chão.
Plantei novas flores;
Fortifiquei minha casa;
Purifiquei meu chão.
Destruíram meu jardim;
Derrubaram minha casa;
Tiraram o meu chão.
Queimei seus sapatos;
Violei seus domínios;
Expus suas almas.
Fogem de espelhos;
Evitam jardins;
Arrastam-se pelas ruas;
Clamam por salvação.

domingo, 3 de janeiro de 2010

O Estranho.

Após estacionar seu carro o homem caminhou pela calçada, maldizendo o calor insuportável que sentia sob o terno impecável.
A expressão séria, carrancuda, corroborava sua fama de esquisito e mal humorado. Secretamente, ele gostava disso e alimentava a fama, pois ser esquisito colocava-o numa espécie de zona de conforto onde raramente era cobrado por algum gesto ou atitude.
Afinal, o esquisito podia quase tudo, pois ninguém esperava um comportamento normal de alguém que, definitivamente, era ...esquisito.
- Tio! – a voz de menino que andava apressado para alcançá-lo interrompeu seus pensamentos.
- Não sou seu tio – respondeu o homem secamente, como sempre fazia com garotos de rua e continuando a andar.
- Tá bom – respondeu o menino enquanto tentava acompanhar os passos do homem, emendando em seguida:
- Doutor, então?
- Quem falou que sou doutor? – retrucou o homem caminhando irritado com a insistência do menino. Detestava abordagens como essa e normalmente conseguia espantar a todos com a primeira resposta.
- Ué, com esse carro bacana e essa roupa deve ser doutor...e se não gosta de tio nem de doutor, como é que vou chamar?
- Não chame, ora! – respondeu rispidamente o homem, olhando com um pouco mais de atenção para o menino que não desistia fácil. Reparou no tênis velho, nas roupas gastas e na mochila com a alça remendada que carregava nas costas.
- Mas tio...moço – consertou rapidamente o garoto.
Indignado com tamanha teimosia, o homem estacou de súbito e com a expressão carregada que intimidava até mesmo seus pares na empresa, encarou o garoto pela primeira vez.
- Chega moleque! – exclamou irritado – Não sou seu tio, não o conheço, não quero comprar balas e não dou esmolas! Fui claro agora?
- Foi sim – respondeu o menino olhando fixamente o rosto raivoso do homem e continuando:
- Mas eu não vendo balas nem peço esmolas. Saí da escola agora e estou indo encontrar meu pai para pegarmos o ônibus pra casa. Só chamei você pra avisar que deixou cair isso – explicou calmamente o menino enquanto estendia a mão e entregava um objeto ao homem.
Surpreso e aturdido o homem pegou das mãos do menino o chaveiro que, com certeza, havia desprendido do molho de chaves quando saiu do carro.
O chaveiro era um presente da filha pelo dia dos pais. Foi confeccionado na escola, como acontecia todos os anos. Era uma espécie de mini-livro, com sete páginas, carimbadas em letras minúsculas, mensagens de otimismo e alegria.
Tudo isso passou pela sua cabeça em poucos segundos e, quando olhou, o menino já se afastava.
- Ei, menino! – chamou o homem. Como o menino, ignorando o chamado, continuava a andar ele insistiu:
- Ô moleque, espera!
O menino parou de repente encarando o homem com uma seriedade destoante de sua pouca idade.
- Não sou moleque. Tenho um nome – dito isso, voltou a caminhar.
- Espera – pediu o homem – eu não sei o seu nome, como vou chamar você?
- Não chama...ora! – retrucou o menino – minha mãe falou que eu nunca devo conversar com estranhos e meu pai sempre me espera no ponto de ônibus porque diz que tem muito bandido pela rua. Hoje eu desobedeci aos dois falando com você, que é muito estranho, mas fiquei com pena de deixar você perder seu chaveiro. Mas quando chegar em casa explico pra eles.
Em seguida voltou a caminhar, agora quase correndo para não se desencontrar do pai.
O homem permaneceu ali, parado na calçada, esquecido do sol, tentando entender o que continuava a incomodá-lo junto com uma estranha e desconhecida sensação de desconforto.