sábado, 23 de outubro de 2010

Ciranda

“Como se fora
A brincadeira de roda
Memórias!
Jogo do trabalho
Na dança das mãos
Macias!”
(Gonzaguinha)

Nada como o cheiro, o aroma e a música para reavivar lembranças e até mesmo impedir o esquecimento algumas vezes tão desejado.
Hoje, não por acaso, um trecho da música “Redescobrir” de Gonzaguinha.
Na tentativa de espantar a melancolia que se fortalece nesses dias nublados, cantar sem compromisso com a afinação, redescobrindo memórias já tantas vezes visitadas, as mãos dançando na escrita.
No peito o desejo de poder ser mais nessa ciranda da vida, mas, mesmo não sendo, e com a prosa, mesmo que talvez fraca, a persistência vence.
E quando, frustrada pensa ter-se calado a ciranda, ela surge aproveitando-se de uma distração do silêncio. O burburinho e o fervilhar de idéias se faz ouvir. Discreto, sussurrado aqui, ali e ao redor.
Não, não se cala a ciranda, a prosa; elas são movimento e se fazem ouvir, ainda que baixinho, sorrateiras e sem fronteiras.
E, assim volta a esperança de “Renascer da própria força, própria luz e fé.”

Blog Where: Histórias...

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Histórias...


Filha mais nova dentre quatro mulheres, sete anos me separam da terceira, onze da segunda e catorze da primeira. Todas dirão, com certeza, que não havia necessidade de tantos detalhes, com uma delas complementando que sou prolixa, mesmo.
Muito nova já constatei que minhas irmãs eram dotadas de uma beleza singular; destacavam-se em qualquer ambiente, atraindo sempre os olhares masculinos e femininos.
Uma possuía pernas imbatíveis além de curvas com perfeitas saliências, outra era comparada à Úrsula Andress, e um corpo de violão, para completar, fora dado à terceira.
Junto delas, era uma criança falante, atenta a tudo que faziam, vestiam e, principalmente, aos segredos que trocavam. Alguns eu acabava descobrindo, outros elas inventavam e me contavam, para terem um pouco de sossego.
Às vezes, observava meu corpo de criança no espelho, os ossos salientes, pernas finas e vinha a certeza desanimadora que, se um dia atraísse os mesmos olhares, seria em função da diferença, do contraste.
Essa crença era tão forte que me fazia sentir raiva do infeliz que dissesse que eu era bonita, ou fizesse qualquer alusão à beleza das “quatro” filhas de meus pais.
Mas isso durava pouco e logo estava eu acelerando o tempo, e me via usando as roupas que mais gostasse, de cada uma delas. Fazia uma montagem de mim mesma adulta; rosto de uma, corpo de outra e cabelos e pernas de outra ainda.
Em meio a tudo isso, um irmão, quatro anos mais velho, para quem elas me empurravam vez ou outra. Provocador, fazia tudo para me irritar, mas tinha doçura suficiente para, com o mesmo empenho, me alegrar.
Em casa vivia num mundo de vestidos, maquiagens e sapatos misturado com técnicas e dribles de futebol, construção de carrinhos de rolimã, mangas e jabuticabas devoradas nos galhos mais altos das árvores.
Meu pai estava sempre bem humorado, sorrindo e entrava em toda brincadeira que eu iniciasse. Já minha mãe não tinha o mesmo humor e os sorrisos eram mais raros e disfarçados, pois temia que ficássemos mal acostumados.
De duas coisas eu gostava especialmente: observar e imitar minhas irmãs e material escolar novo, sempre comprado pelo meu pai, menos resistente que minha mãe à minha insistência.
Olhar minhas irmãs era como deleitar-me antecipando meu futuro. Envolver-me no cheiro de cadernos e livros novos, lápis e canetas incomuns era deliciar-me com meu presente.
Inventava histórias que escrevia e escondia no porão da casa, até que um dia meu irmão descobriu. Prometeu, jurou guardar segredo e, talvez, percebendo meu desespero, acredito que tenha cumprido a promessa
A descoberta do meu esconderijo, somada ao medo que eu sentia quando ia sozinha ao porão, transformou a preservação do meu segredo numa missão extenuante.
Passei a guardar os papéis junto com meu material escolar para que ninguém em casa os visse. Chegando ao colégio escondia-os sob o uniforme para que as freiras não encontrassem.
Um dia, ao voltar da escola escondi minhas histórias dentro da fronha do meu travesseiro e só me lembrei delas na manhã seguinte quando peguei o material para fazer a tarefa de casa.
Voltei apressada para o quarto, mas do corredor vi minha mãe com os papéis nas mãos, lendo e, ainda hoje não sei se rindo ou apenas sorrindo.
Também não sei se ela me viu ou não, mas nenhuma das duas tocou no assunto e quando eu fui dormir a roupa de cama havia sido trocada, mas minhas histórias estavam lá.

Agora, adulta, gosto do que vejo quando me olho no espelho e, também, de comprar cadernos, livros e do cheiro inconfundível de papel novo.
O cheiro, os aromas são para mim a mágica máquina do tempo que me leva para aqueles aconchegos, portos seguros que só a meninice é capaz de conhecer plenamente.
Histórias continuo a escrever, e da mesma forma: em segredo, assim como acabei de fazer.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Neurótica, eu?

Nos primeiros meses de vida dos meus filhos, eu ficava o máximo de tempo possível olhando para aquele serzinho minúsculo, atenta a cada detalhe, a cada mínima expressão.
Não escondia de ninguém a certeza de que a sobrevivência dele dependia única e exclusivamente de mim, afinal, somente eu, a mãe, conseguiria atender as necessidades do bebê, trocar a fralda, dar banho e embalar do jeitinho que ele gostava. E disso eu tinha plena convicção.
Isso é cuidado, zelo, certo?
Visitas de pessoas que sempre tinham palpite e receitas de chazinhos e remedinhos para filho alheio não faltava. Assim, todos que tentavam de alguma forma interferir ou minimizar esse relacionamento tão especial eram devidamente ignorados.
Algumas pessoas me consideravam um tanto neurótica. Algumas amigas, declaradamente e outras não tinham coragem de falar ou disfarçavam bem.
Claro que à noite, principalmente naquelas noites em que o bebê ficava muito quieto por um período longo, digamos, duas horas, ia ver se estava bem, mexia nele, examinava as roupinhas, os lençóis, à procura de algo que pudesse incomodá-lo.
Bom, também checava a respiração, tocava de leve para vê-lo movimentar-se, essas coisas que todas as mães fazem apenas por precaução, é claro.
Às vezes, acordada tinha sonhos inconfessáveis, como o de ser casada com um pediatra. Ficava imaginando a vida maravilhosa que essas mulheres de sorte tinham! A felicidade suprema de ter à mão e ao alcance do meu telefone esse ser fantástico que responderia cada pergunta que eu fizesse sem aquele olhar em parte condescendente e já minimamente paciente.
Mas não, tinha que ser casada com um advogado que tentava, sem muito sucesso, me convencer que assistir um filme na TV, claro, não colocaria em risco a integridade física e emocional do meu bebê. Com a babá eletrônica do meu lado, obviamente!
Conforme iam crescendo, as minhas atenções e meus cuidados se adequavam ao ritmo da minha vida, mas também aos progressos e, claro, às novas necessidades deles.
Hoje, com as mais amigas, relembro algumas situações e damos boas risadas.
O que não confesso, nem a elas, é a saudade que sinto daquela fase e que me invade quando, com a mochila nas costas ganham a rua.
Um beijo de despedida e, em resposta às minhas recomendações ganho um sorriso divertido acompanhado de um “relaxa, mãe”.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Por ora...

Por ora eu me contento.
Para espanto de muitos e alegria de poucos, nasci teimosa. E a vida, que nada deixa escapar, me acompanha nessa teimosia e às vezes até lhe ouço a risada empurrando-me, fazendo-me prosseguir.
Essa expressão tão usada de matar um leão por dia não me agrada por tudo que ela carrega em si; o ato de tirar a vida e o leão que, convenhamos, sequer sonha com minhas agruras.
Então, quando chega o momento, não necessariamente ao final do dia, em que me dou conta que venci o monstro que me assombra a cada despertar, eu festejo sozinha e depois divido com poucas e caríssimas pessoas.
Comemoro cada mínima vitória sorrindo para a imagem no espelho, fazendo uma prece, agradecendo a Deus, ao universo e, nesse momento, eu me contento.
Por ora eu me contento, pois assim como é certo que outros monstros surgirão, o mesmo acontece com minhas aspirações que me fazem ver a vida que em tantos momentos pensei ter me abandonado.
É então que tudo se soma e se mistura: a alegria genuína dessas poucas pessoas que me são tão caras com a risada contagiante da vida me chamando para o mundo e me fazendo querer e acreditar que há muito mais logo ali adiante.
E acreditando, por ora me contento. Por ora...