sábado, 30 de janeiro de 2010

Mais Louco é Quem Me Diz

Diferente da maioria das pessoas que conhece, ela não gosta de ouvir música quando está triste. As músicas em dias de tristeza são como mãos tocando um machucado sem qualquer cuidado.
Sentada na sala olha para seus discos; os de vinil, tão especiais a ela parecem desafiá-la: “ e aí, não vai encarar?” E ela, que ama música encolhe-se no canto do sofá lembrando a noite insone e suas reflexões sobre o tempo.
Nove anos; há nove anos começaram suas perdas e o luto em seu peito parece, às vezes, que sempre esteve com ela.
Quer acreditar na existência de um ciclo de número cabalístico ou qualquer outro adjetivo mais adequado, que indique o encerramento; pronto, o tempo das perdas, da desesperança acabou.
Sim, pois será verdadeiro por inteiro o ditado tantas vezes repetido “não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe?” Por inteiro, porque metade dele ela sabe ser verdadeiro; o bem acaba e em sua aflição ela olha o tempo, olha a vida e tem medo de não haver tempo para o bem voltar.
Olha seus discos novamente e eles parecem rir de sua covardia.
Nove anos é muito pouco para uma vida, mas é uma eternidade, por exemplo, para a namorada que anseia pelo casamento, reflete ela. Da mesma forma que um segundo é mínimo para uma carícia, mas imenso para uma dor de dente.
E não é só o tempo; uma gota não satisfaz ao sedento, mas pode fazer transbordar uma vida contida.
Deixa em paz meu coração...” as músicas continuam seu desafio, mudo, na sala, mas em volume máximo na sua cabeça.
Não, pensa ela, mesmo “amandoChico Buarque, não será essa a minha música tema. Parte para os discos escolhe um e acompanha o cantor, soltando a voz para o mundo; “...mais louco é quem me diz que não é feliz...”

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Pessoas Que Não Quero Encontrar

Existem pessoas que são fagulhas; não compartilham, porque não sabem ou porque nada possuem para repartir. São como aqueles palitos de fósforo que ao serem riscados soltam pequenas faíscas que, em milésimo de segundo se apagam.
Nunca serão chama, labareda, fogo, mas acomodam-se e usam o brilho e o calor de outras que, sem medo de ousar, iluminam, aquecem e fazem de cada momento um espetáculo, uma aventura, uma história de vida.
E, assim, durante nossa jornada encontramos pessoas que passam a vida sendo gotas, jamais jorro d’água.
Pessoas que passam a vida como brasa esperando o sopro que poderia acendê-las.
Tristemente áridas, estéreis, passivas.
Mas, também, inescrupulosamente enganadoras e, na primeira oportunidade tentam destruir o seu oposto, a prova, o espelho que pelo inverso reflete seu imenso fracasso.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sem Nada Para Contar

Ela olhava fixamente para a folha de papel em branco à sua frente enquanto girava a caneta “Bic” entre os dedos. Mais um fracasso para a sua coleção. Se fossem colocados em estantes, como se costuma fazer com troféus, faltaria prateleiras e espaço para elas onde morava.
Segundo as instruções da moça bem vestida cujo olhar, ela imaginava, fosse sempre de superioridade, ela deveria escrever naquela folha um resumo de sua vida. A etapa seguinte seria a entrevista, caso fosse chamada, para depois saber se, finalmente, conseguira a vaga de secretária na empresa.
Escrever não era um problema, pois sempre tirara notas boas em redação. Mas, escrever sobre sua vida era uma piada e ser esse o teste era a maior falta de sorte, afinal não havia nada a contar sobre sua vida!
Como é que alguém conseguiria escrever sobre “nada”? Sim, pois sua vida era um imenso “nada”. Não havia realizado nada de importante que merecesse ser escrito naquela folha; nunca havia tido destaque, na escola ou fora dela.
Seu pai tinha sido um homem rico que perdera toda a fortuna quando ela tinha cinco anos. Portanto, da riqueza quase nada lembrava, mantendo vívida apenas a lembrança do suicídio do pai.
Com a morte do pai ela e a mãe passaram a viver “de favor” na casa de um tio. Em troca do favor a mãe executava os serviços domésticos, ajudada por ela no que sua pouca idade permitia. Como os tios eram muito bondosos, matricularam-na na mesma escola em que a filha estudava.
Aos catorze anos conheceu seu primeiro namorado; apaixonaram-se e, quando ela completou dezoito anos casaram-se. Tiveram três filhos; duas meninas e um menino.
O marido, engenheiro agrônomo tinha uma carreira promissora na empresa em que trabalhava e, aos poucos conseguiram um privilegiado padrão de vida.
Sua mãe, de saúde frágil, havia morrido antes do nascimento de sua primeira filha. Assim, era feliz por ter os três filhos e o marido; formavam uma bela família.
Na semana em que completaria dezoito anos de casamento o marido e as duas filhas morreram num acidente de carro. Restou-lhe, então, somente o filho que, graças a uma febre não havia ido à escola e não se encontrava no carro no momento do acidente.
Agora, com as economias acabando, já perdera a conta de quantos empregos havia tentado, mas todos exigiam experiência, o que lhe faltava.
Mas, de todos os testes este era, realmente, o pior! Escrever sobre sua vida? O que escreveria sobre uma vida tão desinteressante?
Desanimada colocou a caneta em cima da folha em branco, pegou sua bolsa e saiu para a rua pensando que talvez tivesse mais sorte no próximo...

sábado, 23 de janeiro de 2010

Triste Despedida

Ela mentalmente pedia-lhe que a livrasse daquele silêncio mais cruel que qualquer palavra que não nunca antes quisera ouvir.
Não por um sentimento menor que sempre abominou, como ele tão bem sabia, mas sim por ser melhor agora aquela detestável e peculiar gentileza, tão característica dele, que qualquer sinal de pena.
Gentileza contra a qual tantas vezes se rebelara, pois não era outra coisa senão frieza, rigidez. Desejava-a agora, pois mil vezes a gentileza formal que o silêncio de chumbo.
O rosto dele era uma máscara onde ela fixava o olhar na esperança de captar um tremor mesmo que involuntário, um erguer de sobrancelhas, um sinal de humanidade enfim.
Mas nada, a máscara pétrea permanecia; tão conhecida, tantas vezes observada. A máscara da impassividade, da não demonstração de sentimentos, que sempre fora para ele, motivo de orgulho.
Com pesar ela constatou que nada mudara.
Ele permaneceu imóvel, sem emoção, até mesmo naquele último minuto.
A despedida foi triste não pela emoção, mas pela ausência dela, como em tudo mais naquela vida.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Cuida da Mão que Afaga

Cuida, menino, cuida.
Protegê-lo dos horrores seria privá-lo da beleza;
Poupá-lo da ilusão, ainda que vã, seria privá-lo dos seus sonhos;
Impedir seus erros seria privá-lo das opções;

Cuida menino, cuida.
Evitar as desventuras seria privá-lo de provar o sabor do inesperado;
Prevenir as feridas seria privá-lo do direito de ousar;
Pedir que não voe seria privá-lo da Vida;

Cuida, menino, cuida, pois não suportaria vê-lo perecer!
Há necessidade de protegê-lo dos perigos;
Há necessidade de tirar-lhe a miséria do caminho;
Há necessidade de velar seu sono e guardar seus sonhos;
Não peço que leia o triste Augusto, menino, mas cuida da mão que afaga...

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Ausência

Acordar, olhar o sol, admirar o lindo dia e agradecer por tudo seria o certo, o correto, o que todos e tudo nos ensinaram a fazer sempre. Imagino seu olhar triste meu caro amigo, ao saber que hoje eu não queria acordar, mas como não tinha opção, o fiz sem notar o sol, pouco me importei com a beleza (ou não) do dia e suportei o que veio pela frente, ansiando pelo anoitecer.
Como você sabe amigo, as sombras nunca antes me seduziram e sempre quis mais e mais sol.
Tampouco a cama, como refúgio, me atraía, mas sim estar exposta para a vida, o novo, a ânsia pelo que viria.
Até o dia em que o que veio não era bem vindo e tirou-me a vontade, lacerou-me o espírito fazendo com que eu me perdesse de mim, transformando as crenças em dúvidas, as certezas em medos, o riso, mesmo quando suave, em pranto doloroso.
E de tudo ficou um imenso e profundo silêncio.
E, dor maior do que você não estar lá, meu amigo, era a consciência de que nunca mais estaria.
O único capaz de me confortar por tão grande dor, não estava lá, pois estando não haveria necessidade de consolo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Da Minha Janela...

Da minha janela vejo o jovem que se arruma diante do espelho desalinhando os cabelos obedecendo a um modismo invertido, mas não por isso menos belo.
Vejo uma garota lutando com seus cachos, alisando-os e transformando-se numa cópia de tantas outras sem saber que assim fazendo abre mão do seu diferencial, arma mais poderosa e exuberante que aniquilaria as demais.
Viro a cabeça e surge no meu campo de visão a moça que olha ansiosa o relógio, preocupada com o atraso do namorado enquanto analisa o vestido cuidadosamente escolhido para agradá-lo, pois finalmente com esse o namoro será pra valer.
Passeio os olhos e deparo com a mulher aflita, cheirando a roupa tirada pelo marido para depois vasculhar seu celular buscando provas que não quer encontrar.
Constato, então, como é fácil da janela da minha vida observar o outro e ver tão claramente a solução de seus problemas, de suas aflições.
Com que tranqüilidade poderia dizer ao garoto como é belo com cabelos desarrumados ou não;
Dizer à menina dos cachos como são lindos e que use-os em seu favor;
Dizer à moça que espera ansiosa que ela é a essência e não o vestido e, invertidos esses valores, com certeza o que está errado é o namorado;
Dizer à mulher aflita que não corra atrás do que não quer encontrar perdendo momentos preciosos na busca de um sofrimento que talvez nem exista.
Quem dera conseguisse eu olhar para dentro da minha janela e, alertando-me para a vida que passa depressa, com a mesma segurança mostrar-me tantas verdades minhas...

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Ela é espectadora de um mundo, uma vida que, intuitivamente reconhece e sabe que já foi parte atuante. Hoje sequer conhece seu lugar, suas coisas, seus apreços, sua referência.
Não tem, não sabe por onde recomeçar; é como pagar uma pena imposta de luto eterno. E, suprema ironia, nesse estado, paga pelo que lhe foi tirado.
Não confia mais nas lembranças, mesmo nunca tendo sido por elas traída; mas conclui que não lhes cabe culpa pela dor que causam.
Na névoa do sono já não tem certeza se são lembranças ou sonhos que, tantas vezes sonhados calcificaram-se como memória.
Desperta para a luz do dia inclemente e constata: o sono não é mais refúgio.
Pergunta então à vida, qual o sentido afinal; a Vida, olhando-a furtiva e desafiadora responde:
- Se quer mesmo saber, viva!
- Mas viver o que, com quem, para quem?
- Olhe-se no espelho e descubra – responde a Vida já quase a escapar.
- Quando olho no espelho vejo outra a me fitar. Uma desconhecida que me parece, morreu em vida.
- A morte em vida não é morte, mas fuga – responde a Vida.
- Não posso continuar e não sei como recomeçar – responde ela prosseguindo o diálogo insano.
- Ora, ora – responde a Vida entre irritada e divertida – se não pode continuar, volte ao princípio e renasça!

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Finalmente, sobre Boris Casoy.

O comentário no mínimo infeliz feito por Boris Casoy há dias atrás já foi objeto de incontáveis manifestações.
Confesso que vi apenas o deplorável vídeo, melhor dizendo, “áudio”, depois o vídeo com o pedido de desculpas.
Particularmente acredito que cabem desculpas por palavras ditas no calor de uma discussão, por ofensas quando a emoção é exacerbada, quando a razão e a ponderação estão ausentes. Mas não foi isso que se viu.
As palavras ditas, inclusive em tom de piada, expressam uma postura de vida e valores.
Uma triste e deplorável postura diante da vida, diante do Outro que não combina, não corresponde à imagem que fez com que Boris Casoy fosse, por tantos anos, admirado e respeitado, inclusive por garis “do alto de suas vassouras.”
Isso não é uma vergonha; é um ultraje, uma afronta a todos os cidadãos que não estão “no alto de uma bancada de telejornal” criando bordões.
Adequado, agora, o velho e tão conhecido provérbio chinês:
"Há três coisas que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida"

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O Pensador Que Rezava Errado

Eu estava em frente à igreja, olhando a cruz lá no alto, no topo da construção. Distraída só percebi a aproximação do homem quando ele já falava comigo.
- A cruz lá em cima parece tão pequenininha...eu também gosto de parar aqui antes de entrar na igreja e ficar olhando.
Olhei para o homem e sem saber o que dizer apenas sorri. Tinha uma aparência humilde, vestido com roupas simples, aparentando os muitos anos de uso. Observei os cabelos já com vários fios brancos e o rosto com rugas precoces e concluí que embora fosse um estranho não parecia oferecer perigo.
- Desculpe chegar falando assim, mas quando vi a senhora olhando lá pra cima, achei que estava como eu: pensando.
- Não tem problema – respondi sem querer parecer grosseira, mas também, sem vontade de falar.
Ele começou a falar sobre sua vida de maneira tranqüila e foi prendendo minha atenção e aos poucos fui deixando de pensar nos problemas que me absorviam antes da chegada dele.
Falava de si próprio comigo como se fosse a coisa mais natural do mundo:
- Homem simples e de pouco estudo, isso ele era mesmo. Mas pensar ele pensava, e muito! Tinha aprendido muita coisa nessa vida.
Ele e a mulher eram muito religiosos, embora ela fosse mais à igreja, pois ele, muitas vezes, trabalhava aos domingos também.
Freqüentou a escola poucos anos porque desde menino precisava trabalhar para ajudar no sustento da casa. Não tinha diploma, mas não era burro e tinha muito orgulho disso.
Ele trabalhava como pedreiro e a mulher como doméstica e o que ganhavam ia tudo no sustento dos filhos; nunca sobrava e era nisso que estava pensando ultimamente.
Na noite anterior quando começou a rezar, desconfiou que estivesse rezando errado. Pedia a Deus que lhe desse forças para suportar as pauladas da vida; que não faltasse comida para sua família; saúde para poder trabalhar e que nunca lhe faltasse trabalho, tão grande era seu medo do desemprego.
E foi pensando que chegou à conclusão que Deus sempre atendia seus pedidos, pois suportou e enfrentou problemas com o filho mais velho, com o mais novo, com patrão e por aí vai; comida deu sempre na conta, mas sem luxo; saúde sempre teve afinal, uma gripezinha de vez em quando não conta e trabalho nunca faltou. Resultado: Deus dava o que ele pedia e ele estava pedindo errado!Por isso, naquele dia resolveu ir até a igreja rezar e pedir do jeito certo: não ia pedir forças, mas sim menos problemas; que comida tivesse em abundância; que com boa saúde tivesse oportunidade de gozar a vida e que tivesse trabalho, mas que o pagamento fosse justo.
E assim, despediu-se e foi caminhando pela praça enquanto eu, então, pensava sobre as minhas orações.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Aula Incompleta.

Era a filha mais nova, nascida oito anos depois da terceira e pegou a todos de surpresa; a mais velha tinha quinze anos e festejou a notícia; abaixo dela, a de onze anos achou a novidade interessante e a terceira, com sete anos só ficou sabendo quando a mãe chegou em casa com o bebê. Não gostou da novidade e nunca escondeu isso.
No ano de 1.965, a garota tinha sete anos e estudava em colégio de freiras, como suas três irmãs. Não gostava do colégio. Achava sombrio, sério e em todos os lugares tinha um crucifixo. Ela não gostava de olhar para eles; tinha pavor dos pregos, da coroa de espinhos e acha muito triste a história “Dele.”
Logo aprendera que, sempre que se referisse a “Ele”, tinha que ser com letra maiúscula, afinal, tratando-se “Dele”, o pronome virava um substantivo próprio.
Até pensar “Nele” era com maiúsculas, concluiu a garota.
Para seu terror, a freira ensinou também que “Ele” era onipresente e onisciente o que, soube depois, significava que Ele estava em todos os lugares, de tudo sabia e via!
Isso não é justo, pensava a menina sem coragem de falar alto. Afinal, “Ele” a veria cutucar o nariz, tomar banho, fazer xixi, fazer...bom, todas aquelas coisas que ninguém faz na frente dos outros.
Quando tentava falar disso com a mãe ou irmãs, não entendia porque elas apenas riam e passavam a mão na sua cabeça. Resolveu então recorrer ao pai, que era quem mais a compreendia, e, assim que ele chegou de viagem ela correu encontrá-lo como sempre fazia e, na primeira oportunidade expôs o seu dilema.
O pai, tranqüilizando-a ensinou: sempre que fosse fazer “aquelas coisas” era só pedir a “Ele” que fechasse os olhos um pouquinho, só até ela acabar.
Aliviada a menina pensou que bem que as freiras podiam ter ensinado isso também. Afinal, se não admitiam tarefa incompleta não deveriam dar a “aula incompleta” também!
Bom, elas haviam ensinado também que “Ele” conhecia os pecados melhor que o seu autor, mas sempre perdoava desde que houvesse arrependimento sincero e o pecador, de joelhos, pedisse perdão.
Assim, passou a ser comum verem a garota de joelhos dizendo: “Perdão Jesus.”
- Já escovou os dentes?
- Já – ajoelhando-se em seguida.
- Arrumou seu material?
- Sim – joelhos no chão.
- Sabe toda a matéria da prova?
- Sei – ai meu joelho.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Reconstrução

Pisaram minhas flores;
Devassaram minha casa;
Macularam meu chão.
Plantei novas flores;
Fortifiquei minha casa;
Purifiquei meu chão.
Destruíram meu jardim;
Derrubaram minha casa;
Tiraram o meu chão.
Queimei seus sapatos;
Violei seus domínios;
Expus suas almas.
Fogem de espelhos;
Evitam jardins;
Arrastam-se pelas ruas;
Clamam por salvação.

domingo, 3 de janeiro de 2010

O Estranho.

Após estacionar seu carro o homem caminhou pela calçada, maldizendo o calor insuportável que sentia sob o terno impecável.
A expressão séria, carrancuda, corroborava sua fama de esquisito e mal humorado. Secretamente, ele gostava disso e alimentava a fama, pois ser esquisito colocava-o numa espécie de zona de conforto onde raramente era cobrado por algum gesto ou atitude.
Afinal, o esquisito podia quase tudo, pois ninguém esperava um comportamento normal de alguém que, definitivamente, era ...esquisito.
- Tio! – a voz de menino que andava apressado para alcançá-lo interrompeu seus pensamentos.
- Não sou seu tio – respondeu o homem secamente, como sempre fazia com garotos de rua e continuando a andar.
- Tá bom – respondeu o menino enquanto tentava acompanhar os passos do homem, emendando em seguida:
- Doutor, então?
- Quem falou que sou doutor? – retrucou o homem caminhando irritado com a insistência do menino. Detestava abordagens como essa e normalmente conseguia espantar a todos com a primeira resposta.
- Ué, com esse carro bacana e essa roupa deve ser doutor...e se não gosta de tio nem de doutor, como é que vou chamar?
- Não chame, ora! – respondeu rispidamente o homem, olhando com um pouco mais de atenção para o menino que não desistia fácil. Reparou no tênis velho, nas roupas gastas e na mochila com a alça remendada que carregava nas costas.
- Mas tio...moço – consertou rapidamente o garoto.
Indignado com tamanha teimosia, o homem estacou de súbito e com a expressão carregada que intimidava até mesmo seus pares na empresa, encarou o garoto pela primeira vez.
- Chega moleque! – exclamou irritado – Não sou seu tio, não o conheço, não quero comprar balas e não dou esmolas! Fui claro agora?
- Foi sim – respondeu o menino olhando fixamente o rosto raivoso do homem e continuando:
- Mas eu não vendo balas nem peço esmolas. Saí da escola agora e estou indo encontrar meu pai para pegarmos o ônibus pra casa. Só chamei você pra avisar que deixou cair isso – explicou calmamente o menino enquanto estendia a mão e entregava um objeto ao homem.
Surpreso e aturdido o homem pegou das mãos do menino o chaveiro que, com certeza, havia desprendido do molho de chaves quando saiu do carro.
O chaveiro era um presente da filha pelo dia dos pais. Foi confeccionado na escola, como acontecia todos os anos. Era uma espécie de mini-livro, com sete páginas, carimbadas em letras minúsculas, mensagens de otimismo e alegria.
Tudo isso passou pela sua cabeça em poucos segundos e, quando olhou, o menino já se afastava.
- Ei, menino! – chamou o homem. Como o menino, ignorando o chamado, continuava a andar ele insistiu:
- Ô moleque, espera!
O menino parou de repente encarando o homem com uma seriedade destoante de sua pouca idade.
- Não sou moleque. Tenho um nome – dito isso, voltou a caminhar.
- Espera – pediu o homem – eu não sei o seu nome, como vou chamar você?
- Não chama...ora! – retrucou o menino – minha mãe falou que eu nunca devo conversar com estranhos e meu pai sempre me espera no ponto de ônibus porque diz que tem muito bandido pela rua. Hoje eu desobedeci aos dois falando com você, que é muito estranho, mas fiquei com pena de deixar você perder seu chaveiro. Mas quando chegar em casa explico pra eles.
Em seguida voltou a caminhar, agora quase correndo para não se desencontrar do pai.
O homem permaneceu ali, parado na calçada, esquecido do sol, tentando entender o que continuava a incomodá-lo junto com uma estranha e desconhecida sensação de desconforto.